Flávio Cerqueira, um escultor de significados
Por Lilia Moritz Schwarcz
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Introdução: O mármore e a murta ou como moldar e tornar sólido
O jesuíta Antônio Vieira (1608–1697), que chegou no Brasil em 1614, dedicou sua vida à tarefa de catequizar os gentios desta nova terra: uma América portuguesa. Num momento em que a Igreja passava por dificuldades na Europa, expandir a fé cristã entre os indígenas do Novo Mundo, e assim revitalizar o catolicismo, era um dos objetivos desse religioso, que estabeleceu contato direto com as populações nativas do Brasil. Padre Vieira converteu-se, aos poucos, num combatente da exploração e da escravização dos indígenas, e passou, ademais, a duvidar da obra do colonizador europeu. Por isso, no “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” (1657), em vez de louvar o sucesso da colonização, o jesuíta reconhece o oposto: como era árdua e difícil a tarefa de “trazer a verdadeira fé” para esses dispersos Brasis.1
Há uma passagem especialmente significativa desse sermão, em que o religioso dedica-se a descrever as dissemelhanças existentes entre dois materiais – o mármore e a murta. A partir deles, estabelece, então, paralelos entre o convívio e o choque de duas culturas distintas: a dos colonos e aquela dos indígenas. O sermão inicia-se com Vieira fazendo uma diferenciação entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Na sequência, explora outro regime de diferenças: entre a fé sólida e inquebrantável dos europeus e a pretensa pacificidade e maleabilidade dos povos nativos do Brasil. Evangelizar os pagãos na Europa era tarefa árdua, dolorosa e custosa; no entanto, o resultado desse trabalho ficava para sempre, duro e rijo como o mármore branco. Já catequizar as “gentes desses Brasis” era trabalho em tudo distinto. Era como domar uma murta, um arbusto de porte médio e maleável, que aceitava logo a poda, tomava imediatamente a forma que se queria, mas, ao primeiro descuido, voltava ao desenho original.
Essa era e ainda é uma imagem forte para pensar e definir os povos ameríndios, que pareciam fáceis de catequizar, mas que logo voltavam ao seu então chamado “estado original e primitivo”. O certo é que índios tupinambás resistiam à aprendizagem promovida pelos jesuítas e ao recrutamento que os ‘karaibas” lhes impunham, dando um sentido particular à nova fé – “traduzindo” o que lhes fora ensinado para seus próprios
1 VIEIRA, Antônio. “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” (1657). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16396
termos. Essa era, na feliz expressão de Arcadio Dias-Quinones, uma forma de “brega”:2 diante da vantagem militar dos colonos, o importante era negociar o possível e não abrir mão do que era, de fato, inegociável. Por isso, e como mostra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a inconstância dos índios “obrigava” os religiosos a promover uma constante reevangelização. Sendo assim, a inconstância se converteu no que havia de mais constante no relacionamento com essas populações.3
Mas há outras comparações a estabelecer. Estátuas de mármore são feitas de um material caro, por suposto eterno, e, não por coincidência, foram particularmente utilizadas para exaltar a memória de grandes estadistas e nobres, em geral homens, ou membros da Igreja e do Papado. Difíceis de esculpir, as obras viravam eternas na forma que finalmente recebiam. Já com a murta tudo parecia funcionar ao revés – ela era facilmente moldável, mas seu aspecto durava pouco; logo voltava à forma inicial.
A contraposição virou uma metáfora fácil para se pensar na empresa da colonização. De um lado, a suposta superioridade do europeu representada pelo mármore; um material entendido como nobre, digno e perene, como deveria ser a civilização ocidental. De outro, a insubmissão dos povos nativos que, apesar de muitas vezes não se oporem diretamente à colonização, também não se conformavam passivamente diante da anulação de seus conhecimentos, suas filosofias e sua fé: mostravam na prática que não eram homens de murta. Por isso, adaptavam-se como e sempre que podiam. Nesse caso, “adaptar” significava reagir e se rebelar, ou não adotar cegamente a fé alheia – o que já indica como não houve nada de pacífico e tranquilo no contato entre o europeu e o gentio americano.
O Sermão do Padre Vieira, tantos séculos depois, ainda serve para introduzir mais uma possível torção de conceitos. No nosso caso, ajuda não só a esmiuçar o regime de diferenças entre o mármore e a murta, mas também a refletir sobre a arte de esculpir. Qual o labor envolvido na arte de dar forma à matéria bruta? Qual é o engenho presente na seleção do material necessário e na temperatura ideal para dar vida a um espaço até então vazio de significados?
Quer me parecer que Flávio Cerqueira, com sua bela e consistente obra escultórica, expressa por, com e sobre o bronze, também inverte sentidos prévios, os
2 DIAS-QUINONES, Arcadio. A arte de bregar e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
3 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
quais, de tão naturalizados, provocam estranhamento ao serem manuseados de maneira tão particular – escapam da norma ou da convenção construída ao longo do tempo. Sendo assim, em vez de referendar divisões canônicas da história da arte, o artista as subverte, já na escolha dos personagens que esculpe. Em primeiro lugar, retoma o complexo gênero escultórico, pouco explorado pelas novas gerações, que parecem reagir não só ao alto preço do material, como ao processo de trabalho especializado que a técnica demanda. Em segundo, é preciso destacar que o bronze, desde o final do século XIX, tem sido pouco utilizado nos trabalhos figurativos brasileiros. Saiu de voga.
Mas há mais outra inversão digna de nota: Flávio seleciona o bronze não para representar protagonistas oficiais da história brasileira – reis, príncipes, imperadores, arcebispos ou governadores. Prefere os protagonistas do dia a dia e, no caso desta exposição, mulheres, elevadas em seus gestos cotidianos.
As figuras de Flávio também não trazem qualquer registro verista ou reproduzem as dimensões originais dos personagens nos quais se inspiraram. Não há, pois, sentido de cópia do real; trata-se sempre de produto da imaginação. Arte com arte.
Além do mais, se o bronze, quando pronto, é um material sólido e rijo, durante o processo de elaboração ele é tremendamente moldável. Por isso, e com suas opções escultóricas coerentes, Flávio Cerqueira destrói a dicotomia entre duro e mole, o que nasce para se eternizar ou o que fica para se adaptar, e cria uma arte a um só tempo adaptável e duradoura; resistente e tesa, mas também flexível. Mármore e murta.
Essa equação – jogada entre a solidez e a adaptabilidade – faz da obra de Flávio Cerqueira uma conversa entabulada entre o mármore com a murta; não sua polarização ou dicotomia. No processo de confecção das obras, o móvel vai virando rígido, eterno, com o artista se convertendo num escultor de significados.
O processo: da cor do bronze novo
Diferente das demais exposições de Flávio Cerqueira, nesta o espaço figurativo volta-se definitivamente para o universo feminino. Representadas a partir de diferentes idades e nas mais variadas situações, mulheres, meninas, moças, senhoras exercem um direito que lhes é fundamental: a liberdade. Liberdade para voar, para escutar, para brincar, para pichar, para olhar as estrelas, para estarem sozinhas ou em companhia. Liberdade de dizer sim, mas também de ecoar um sonoro não.
O material já era conhecido de Flávio Cerqueira: o bronze – uma série de ligas metálicas que tem como base o cobre e o estanho, bem como proporções variáveis de
elementos como zinco, alumínio, antimônio, níquel, fósforo, chumbo, entre outros, que cumprem a função de assegurar características superiores às do cobre.
O processo funciona como se a junção de várias ligas disfarçasse, de alguma maneira, aquela que é a sua origem comum: o cobre. Os ferreiros logo notaram que a utilização do cobre era inviável, devido à alta procura e ao decorrente preço elevado do produto. Já a mistura com o estanho aumentava o volume do material, tornando maior a oferta, e, consequentemente, a sua viabilidade comercial.
Não à toa, o termo “bronze” vem do persa biring, que quer dizer “cobre”. A descoberta dessa liga metálica – que resulta da mistura do cobre com o estanho – foi tão fundamental que deu origem a um período da história conhecido como “Idade do Bronze”, que teria se iniciado no Oriente Médio, em torno de 3300 a.C. As armas e as ferramentas eram feitas de bronze, assim como as estátuas dos dirigentes. Também se aproveitava das diferentes cores do material, que, quando polido, chegava até o amarelo ouro, tonalidade muito usada nas esculturas da época.
Mas a popularidade veio mesmo da resistência estrutural que essa liga alcançava, não sendo sujeita à corrosão atmosférica. Também a facilidade de fundição, as potencialidades e a capacidade de acabamento permitiram não só uma evolução na técnica do polimento, como também uma grande riqueza de cores.
Como vimos, durante o processo de fundição, o material é maleável. Na verdade, o bronze só é fluido quando aquecido a 1.300 graus. Ou seja, até que a obra esteja finalizada, o trabalhador e o artista procuram pela forma ideal. A escultura se faz, portanto, no flagrante da ação. A escultura é o resultado de um processo significativo e não expressa, tão somente, a matéria final.
O bronze é nobre como o mármore. Mas enquanto no mármore vai-se extraindo matéria, no bronze se adiciona, como se o metal fosse, de alguma maneira, estabilizado a partir da sua combinação com outros elementos, inclusive as mãos do artista. A partir daí, e depois de resfriado, ele entra em “estado de múmia”: não se altera mais, mesmo com o passar do tempo. E se na Europa a técnica serviu para “mumificar” a nobreza e as autoridades – para assim eternizá-las –, já por aqui ela foi pouco utilizada, por conta do alto preço e das dificuldades presentes na sua produção. Mesmo assim, compôs peças que ornaram nossas igrejas barrocas ou os bustos dos nossos imperadores.
Já Flávio, influenciado pelo barroco e pelas possibilidades da técnica, tirou o bronze “do pedestal”, para aplicá-lo às cenas mais cotidianas, cheias de beleza e afeto.
Seus objetos têm uma escala menor e reduzida. Crescem, porém, nas situações que apresentam e representam.
A arte não tem compromisso com o verismo; só consigo mesma. Por isso, cada obra que compõe esta exposição mais se parece com um conto. Isto é, cada uma carrega sua própria história, que começa e termina com ela. É certo que todo conto se encerra em si mesmo. Nesta exposição, todavia, por conta da conversa que as esculturas estabelecem entre si, é possível dizer que existe uma certa estrutura interna, comum às diferentes obras, que convida ao diálogo. Elas se abrem e não se fecham.
Macunaíma, personagem de Mario de Andrade e do modernismo paulistano, dizia que os nativos tinham a “cor do bronze novo”. Eram escuros, mas podiam ser claros também. Eram maleáveis, pois faziam a guerra, mas realizavam alianças também. Comiam, mas também podiam ser comidos. Nesse sentido, nesta exposição, cada um é convocado na condição de coautor, pois as histórias aqui narradas não se encerram; encontram-se em diálogo com outras narrativas dos tantos “outros e outras” que vivem em cada um de nós.
As obras: atalhos para a liberdade
Diz a mitologia indiana que o mundo foi criado muitas vezes. E a cada vez tomou uma forma diferente. Mais: logo que terminado, o novo mundo se acomodava nas costas de uma tartaruga. E dessa forma seguia o processo contínuo e ininterrupto: a cada novo mundo, uma nova “tartaruga mais profunda” surgia e apoiava mais um novo mundo. Sendo assim, cada mundo ficou diverso na sua semelhança, pois relacionado, mas também profundamente separado, na diferença que estabelecia com os demais.
“Liberdade” era palavra muito preciosa no Brasil escravista, que manteve durante quase quatro séculos o sistema intocado e, ademais, naturalizado. A liberdade era, portanto, um bem difícil de conquistar e ainda mais complicado de manter. Com a República, regime pautado em basicamente dois conceitos – igualdade e liberdade –, a realidade não se alterou substancialmente por aqui.
Ao contrário. Com a Abolição, em maio de 1888 – que veio com uma lei curta, conservadora e não inclusiva –, as populações negras tiveram de construir seus próprios arranjos e formas de emancipação. Jornais negros, ativismo, escolas, mobilizações, movimentos políticos representaram formas de fazer da liberdade uma realidade mais ampla, e de qualificar a democracia. Sabemos, porém, que estamos longe dessa utopia,
num país que ainda pratica um genocídio negro e onde mulheres negras são as maiores vítimas da violência e do estupro.
Mas em “Atalho para a Liberdade”, Flávio Cerqueira, como é de seu costume, inverte caminhos e percursos mais óbvios. Para começar, o artista revoluciona nossa lógica visual. O bronze, um material tão pesado, parece tênue, pois está supostamente suspenso por três balões. Leve, a moça/menina fecha seus olhos, eleva os dois braços, como se estivesse flutuando – aliás, como há de ser o caminho para a liberdade. Com ela tudo parece voar, com o bronze se revelando, inesperadamente, rarefeito.
A ponte que liga os balões ao corpo da personagem é o seu cabelo, elevado para se transformar numa espécie de elo ou corda resistente. Por debaixo só se podem ver os sapatos, os tênis, numa versão contemporânea desse tipo de símbolo máximo da liberdade no Brasil. Como se sabe, durante o período da escravidão, uma das maneiras de se distinguir os senhores de seus serviçais era olhar para os pés: só os primeiros estariam calçados. Por isso mesmo, com a chegada da liberdade formal, tardia no Brasil, muitos ex-escravizados e ex-escravizadas compraram sapatos e, quando não conseguiam calçá- los, pela falta de hábito de uso, usavam-nos como uma espécie de troféu, e a tiracolo.
Também nessa escultura eles se parecem com troféus. Afinal, sua base é a que mais se vê por debaixo da obra. Assim, se em geral as solas dos sapatos são basicamente feitas para serem invisíveis – para não serem vistas –, nesse caso elas ganham primeira importância. São elas que tocam a realidade.
Nesse mundo, são eles, os sapatos, o “atalho”, o caminho mais curto “para a liberdade”. De resto, tudo é bronze: os três balões, os cabelos espessos, mas afunilados em cone, o rosto elevado como o de um anjo barroco, as vestes que flutuam, os braços como asas. Leveza feita do peso.
Como se o silêncio dissesse tudo
Um meio corpo de mulher se destaca nessa escultura, e de forma enigmática. Cabelos detidamente desenhados, sobrancelhas espessas, olhos fechados e voltados para baixo revelam alguém que se concentra em seu ofício. A expressão é serena, com as aberturas de dois copos voltados para seus ouvidos. O que tanto escuta a nossa protagonista?
Olhando de forma cuidadosa, mais outro enigma se delineia. Na cena, vislumbramos um jogo tradicional, no qual se procura ouvir por entre copos. O problema
é que não sabemos o que pergunta a nossa protagonista e muito menos a resposta que deseja ouvir. Essa é, assim, uma escuta difícil, interrompida e com muitos ruídos.
Quem sabe ela queira se evadir deste mundo; concentrar-se num outro, no seu imaginário. Mais não sabemos, pois não nos é dado saber. Resta a dúvida, que muitas vezes é muito mais produtiva do que uma assertiva.
Na nossa frente, uma mulher negra carrega seu segredo. Toda obra carrega o seu segredo – aquele que insiste em não se revelar ao primeiro olhar. Ou talvez essa seja a escultura que mais se assemelha à estrutura aberta de um conto. Cabe ao observador encontrar o seu sentido e fechar a história.
Já ela parece absorta demais no seu segredo. Quem sabe ela esteja escutando o tremendo som do silêncio?
Cansei de aceitar assim
Uma moça, com as formas de seu belo corpo bem delineadas, recosta-se numa vistosa placa onde se lê a palavra STOP. O sentido contido na palavra é suficientemente forte e convencional para não legar qualquer tipo de dúvida. Trata-se de um aviso, de um alerta, de uma ordem para que não se avance. Não é preciso ler e tampouco traduzir para ter certeza da mensagem ali contida. Altiva, ela parece segura com seu corpo ereto, cabelos amarrados, perna direita levemente dobrada e olhar que parece perscrutar o futuro.
Flávio conta que essa foi a única obra que realizou com a ajuda de modelo vivo. Há, pois, questões da própria história da arte presentes nesse trabalho. Mas, nesse caso, ao invés da posição submissa, passiva, de quem se deixa ver, a moça tem um papel ativo e incontornável na obra. Ela é, nesse sentido, também autora dessa escultura.
“Cansei de aceitar assim” subverte, propositadamente, as convenções do gênero. Na produção escultórica há uma grande predominância na representação de homens, que são em geral conhecidos e cuidadosamente destacados. Já no caso das mulheres, não só existem menos trabalhos a elas dedicados, como esses, normalmente, trazem moças nuas, anônimas e desconhecidas; são só e tão somente modelos.
Por isso, a postura aqui é política – dado que pode ser referendado a partir do título da obra. Num país como o Brasil, em que durante muito tempo a existência de verdadeiras culturas do estupro e da violência sexual contra mulheres, sobretudo negras, não era reconhecida e nem sequer notificada, pela beleza da arte, o trabalho duplica a sua função: alerta, desafia, convida, mas encanta também.
Esse é um corpo pleno, mas “não disponível”. Um corpo orgulhoso e que decide se expor; não é incitado a isso.
Mas essa é igualmente uma história de limites. De pare, stop, aqui não mais. Uma obra feita por um homem artista, mas que denuncia agressões neste país em que misoginia é linguagem e forma recorrente de admoestação, e onde o próprio termo “feminicídio” só foi dicionarizado em 2015.
“Pare aqui”, pois esse é o limite, como modelo e realidade; modelo feito realidade.
Better together (ou “two is a double”)
Uma espécie de trave delimita um campo de possibilidades. Ereta, uma
mulher/menina, de traços menos feminilizados, sustenta outra em seus ombros. Ela está de pé num caixote que, sendo de bronze, parece feito de madeira. Como num teatro de absurdos, a segunda moça apoia a mão na parede e com a tinta marca a superfície branca com a frase “Better together”. Nas suas mãos um rolo igualmente de bronze, mas que parece feito também de madeira e esponja, desafia o espaço. Espaço feito de liberdade: da força que surge em dobro, em duas.
A situação e a sentença iluminam o contexto que então se projeta: em duas é sempre melhor. Colocada no ambiente desta exposição, em que são tantas as mulheres fortes, juntas, a frase é ainda mais significativa: juntas somos muito mais fortes e lutamos pela liberdade.
A cena é quase uma síntese dos tantos sentidos presentes nesta mostra. “A união faz a força”, diria o dito popular. Ou então, “ninguém larga a mão de ninguém”, frase entoada pela ativista e vereadora Marielle Franco, assassinada friamente em março de 2018.
Para dar nome às coisas
Tudo começou com uma frase antes contida neste texto: “estudar é dar nome às coisas”. A frase ressoava a um dito do etnólogo Claude Lévi-Strauss, que certa vez afirmou que as coisas são antes classificadas, para então ganharem significado, e não o contrário.4 O conceito também está presente no famoso livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas, quando o filósofo procura examinar o sentido das classificações.5
4 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2016. 5 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
Pessoas humanas são seres classificadores, que pretendem tudo nomear e assim entender. E é esse o impulso que tomou forma na obra chamada por Flávio Cerqueira de “Para dar nome às coisas”.
Nessa escultura, comovente, vemos uma adolescente com o corpo levemente inclinado, apenas o suficiente para que possa melhor utilizar o objeto que traz nas mãos: uma luneta. Absorta, ela se perde de si, tentando observar um mundo que não conhece; fora desse lugar. O telescópio leva a outras galáxias, a lugares distantes, e revela o desejo pela procura do diferente, do desconhecido.
Revela também a atividade do cientista que, a partir do seu conhecimento, e reconhecimento, pretende nomear – e assim inventar – estrelas, cometas e planetas. Esse impulso faz parte da própria humanidade, que se dá ao luxo de “descobrir” o que muitas vezes já existe, muito antes dela. Faz parte também da atitude curiosa da garota que escapa do seu contexto a partir do gesto de inaugurar algo novo: uma forma de liberdade. Um esconderijo, uma forma de escapar.
Como cantou Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”.
Um mundo de cada vez
Cada uma das esculturas expostas nesta mostra traz “um mundo de cada vez”. Como nos bons contos, essas pequenas histórias não carregam consigo bula ou solução fácil, mas é como se as encontrássemos encerradas nos seus próprios delírios significativos.
Esta é uma exposição que carrega, a partir da maestria de Flávio Cerqueira, muitas histórias em uma só. Uma história muito bem entabulada entre o mármore e o bronze, entre mulheres unidas em seu protagonismo, na luta pela liberdade. Essa é uma utopia forte neste país que ainda luta pela igualdade e procura por sua democracia.
Liberdade é o tema que aglutina todas as obras presentes nesta exposição. Uma menina que escapa de seu mundo munida apenas de seus balões que a levam para o espaço; uma adolescente que sonha com um lugar que extrapola as fronteiras por ela conhecidas; duas moças que encontram um espaço de expressão, unidas, e revelam que a boa mudança precisa ser coletiva; uma garota que traz um símbolo de “pare” nas mãos, mas que, paradoxalmente, ganha sentido de autonomia; uma senhora que escuta seus copos e assim conquista a sua liberdade, longe de tudo e de todos.
Impossível deixar de fazer um paralelo com o período em que hoje vivemos. Todas essas personagens femininas parecem estar mirando algum tipo de fuga, a busca de uma hipotética mudança, uma situação nova, uma saída para essa fase de reclusão e de distanciamento social.
Se são muitos os “contos” variados e embutidos nas esculturas, em comum elas trazem esse desejo indisfarçado de uma liberdade que extrapola os contextos particulares: liberdade em relação a uma determinada situação; liberdade na procura de um outro espaço físico.
Em um Brasil sufocado, e que cria uma espécie de cinturão de esquecimento e de invisibilidade, sobretudo no que se refere às pessoas negras, as esculturas de Flávio Cerqueira clamam por liberdade. Juntas, mas diferentes, elas são expressão de um contexto opressivo, mas também a representação e projeção da miragem de um mundo melhor, para onde se possa escapar.
Nesse sentido, elas se convertem também em símbolos deste país que pode parecer maleável como o processo de produção do bronze, mas rígido como as esculturas finalizadas. São assim símbolos diletos dessa nação que precisa ser refundada, renascer “a cada vez”, de maneira a expurgar o racismo que, sendo uma prática naturalizada no Brasil, acaba por inviabilizar sua forma republicana.
Flávio Cerqueira, a sculptor of meanings
Introduction: the marble and the myrtle, or how to mold and turn solid
The Jesuit priest Antônio Vieira (1608–1697), who arrived in Brazil in 1614, dedicated his life to the task of catechizing the heathens of this new land: a Portuguese America. At a moment when the church was beset with difficulties in Europe, expanding the Christian faith among the indigenous peoples of the New World, and thus revitalizing Catholicism, was one of the aims of that cleric, who established direct contact with the native populations of Brazil. Father Vieira gradually became an opponent of the exploitation and enslavement of the Indians, and moreover began to doubt the work of the European colonizer. For this reason, in his “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” [Fragment of the Sermon of the Holy Ghost] (1657), instead of praising the success of the colonization, the Jesuit recognizes the opposite: how painstakingly difficult it was to “bring the true faith” to these scattered inhabitants of the Land of Brazil.1
There is an especially significant passage in this sermon, in which the priest describes the dissimilarities between two materials – marble and myrtle. Based on them, he goes on to establish parallels between the coexistence and clashing of two different cultures: that of the colonists and that of the indigenous people. In his sermon, Vieira begins by establishing a differentiation between new-Christians and old-Christians. He then goes on to explore another category of differences: between the solid, unbreakable faith of the Europeans and the alleged passivity and malleability of the native people of Brazil. Evangelizing the pagans in Europe was a difficult, arduous and costly task; however, the result of this work remained forever, strong and rigid like white marble. On the other hand, catechizing the “people of these Lands of Brazil” was an altogether different sort of work. It was like taming a myrtle, a medium-size malleable shrub that was amenable to being pruned and immediately took on the shape that one wanted, but would also, at the first opportunity, revert back to its original form.
This was and still is a powerful image for thinking about and defining the Amerindian people, who appeared easy to catechize, but would quickly return to their so-called “original and primitive” state. Certainly, the Tupinambá Indians resisted the teachings of the Jesuits and the recruiting that the “karaibas” imposed on them, giving a particular
1 VIEIRA, Antônio. “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” (1657). Available at:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16396
(retrieved January 25, 2021).
By Lilia Moritz Schwarcz
meaning to the new faith – “translating” into their own terms what they were taught. This was, in the apt expression by Arcadio Dias-Quinones, a from of brega [dealing with / coping with / working through something]:2 against the military advantage of the colonists, the important thing was to negotiate what was possible, and not give up what was, in fact, unnegotiable. For this reason, as shown by anthropologist Eduardo Viveiros de Castro, the instability of the Indians “obliged” the priest to carry out a continuous re- evangelization. Thus, the instability was converted into the most constant aspect of the relationship with these populations.3
But there are other comparisons to establish. Marble statues are made of inexpensive and supposedly eternal material and, not by coincidence, were particularly used to exalt the memory of great statesmen and noblemen (rarely women), or members of the Church and the papacy. Difficult to sculpt, the works became eternal in the form they finally received. On the other hand, with the myrtle it seemed entirely the opposite – it was easy to mold, but its new form did not last long, as it would soon return to its initial shape.
This comparison and contrast became an easily understood and remembered metaphor in the colonization process. On the one hand, the supposed superiority of the European represented by the marble – a material understood as noble, dignified and perennial, as Occidental civilization should be. On the other, the submission of the native peoples who, despite that they did not often directly oppose the colonization, also did not passively conform with the annulling of their knowledge, their philosophies and their faith: they showed in practice that they were men of myrtle. For this reason, they adapted whenever they could. In this case, “adapting” meant reacting and rebelling, or not blindly adopting the faith of the other – which in itself indicates that there was nothing pacific and tranquil in the contact between the European and the American heathens.
Even after the intervening centuries, the Sermão do Padre Vieira still serves to introduce a further twist in the concepts. In our case, it helps not only to compare and contrast the differences between marble and myrtle, but also to reflect on the art of sculpting. What work is involved in the art of giving form to the raw material? What sort of skill is needed for selecting the necessary material and the ideal temperature for giving life to a space previously empty of meanings?
2 DIAS-QUINONES, Arcadio. A arte de bregar e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
3 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
To me it seems that Flávio Cerqueira, with his beautiful, consistent sculptural work, expresses by, with an about bronze, while also inverting previous meanings, which, for being so naturalized, give rise to estrangement when they are handled in such a peculiar way – they lie outside the norm and outside the convention constructed over time. Thus, instead of affirming canonic divisions of art history, the artist subverts them, already in the choice of the characters he sculpts. In the first place, he goes back to using the complex sculptural genre, little explored by the new generations, who seem to react not only to the high price of the material, but also to the process of specialized work that this medium demands. Second, it must be noted that bronze, since the end of the 19th century, has been little used in Brazilian figurative works. It is no longer in vogue.
But there is yet another inversion that should be noted: Flávio selects the bronze not to depict official protagonists of Brazilian history – kings, princes, emperors, archbishops or governors. He prefers protagonists from everyday life, in the case of this exhibition, women, elevated in their daily gestures.
Flávio’s figures are also not sculpted with veristic features, nor in 1:1 scale with the characters that inspired them. They bear no sense, therefore, of being copies of the real; they are always a product of the imagination. Art with art.
Moreover, if the bronze, when finished, is a solid and rigid material, during the process of the work’s development it is readily moldable. In this light we see that, with his consistent sculptural choices, Flávio Cerqueira destroys the economy between hard and soft, between what is born to be eternal and that which remains to be adapted, and creates an art that is simultaneously adaptable and perennial; resistant and tough, but also flexible. Marble and myrtle.
This equation – an interplay between solidity and adaptability – makes Flávio Cerqueira’s work a sort of conversation that the marble has with the myrtle; it is not about polarization or dichotomy. In the process of making his works, what is mobile becomes rigid, eternal, in a process in which the artist becomes a sculptor of meanings.
The process: on the color of new bronze
Unlike the other exhibitions by Flávio Cerqueira, in this one the figurative space is focused definitively on the feminine world. Depicted at different ages and in a wide range of situations, young girls, teenage girls and older women exercise a right that is fundamental to them: freedom. The freedom to fly, to listen, to play, to paint graffiti, to
look at the stars, to be alone or in company. Freedom to say yes, but also to blare out a resounding no.
The material was already known to Flávio Cerqueira: bronze – a series of metallic alloys based on copper and tin, along with variable proportions of elements such as zinc, aluminum, antimony, nickel, phosphorus, lead, and others, which result in characteristics that are superior to those of pure copper alone.
The process works as though the combination of various alloys somehow disguised its common origin: the copper. The metalsmiths soon noted that the use of copper was unviable, due to the high demand for the metal and the resulting high price of the product. Mixing it with tin increased the volume of the material, resulting in a greater supply and, consequently, a more commercially viable product.
Not by chance, the term “bronze” comes from the Persian biring, which means “copper.” The discovery of this alloy – basically a mixture of copper with tin – was so fundamental that it gave origin to a period in history known as the “Bronze Age,” which began in the Middle East, around 3300 BC. The weapons and tools were made of bronze, as were also the statues of the rulers. They also took advantage of the different colors of the material, which, when polished, could have the yellowish glow of gold, a tone much used in the sculptures of that time.
But its great popularity owed much to the alloy’s strength, and its resistance to atmospheric corrosion. Coupled to these was its relative ease of casting, along with its potential to be finely finished (ushering in improvements in polishing techniques) and its great richness of colors.
As mentioned above, during the process of casting, the material is malleable. Actually, bronze is only fluid when heated to 1300°C. So the worker and artist make preparations, seeking the ideal form, before it is finalized. The sculpture is made literally in the heat of the moment, as the result of a meaningful process that is not only expressed in the final material.
Bronze is a noble material like marble. But while the work with marble involves the extraction of material, in the work with bronze, material is added, as though the metal were, somehow, stabilized based on its combination with other elements, including the artist’s hands. From that point onward, and after it is cooled, it enters a “mummy-like state”: it no longer changes, even with the passage of time. And if in Europe the technique
served to “mummify” nobility and authorities – to thus eternalize them – around Brazil it was little used, due to the high price and difficulties of its production. Nevertheless, it was used in pieces for ornamentation in baroque churches, and in busts of our emperors.
In Flávio’s case, influenced by the baroque and by the possibilities of the technique, he took bronze “off the pedestal,” to apply it to scenes of a more commonplace sort, full of beauty and feeling. His objects have a smaller than life-size scale. They grow, however, in the situations they present and represent.
Art does not have any commitment to verism, only to itself. For this reason, each work that composes this exhibition is like a short story. That is, each one bears a tale, which begins and ends with it. It is true that every tale is contained in itself. In this exhibition, however, because of the conversation that the sculptures establish among themselves, it is possible to say that there exists a certain internal structure, shared in common by the various artworks, which invite dialogue. They open themselves, and none is cut off from the others.
Macunaíma, the fictional character invented by Mario de Andrade and who is an integral part of the modernist movement of São Paulo, said that the natives had the “color of new bronze.” They were dark, but they could also be light toned. They were malleable, because they made war, but also alliances. They ate, but they could also be eaten. In this sense, in this exhibition, each visitor is invited in the condition of a co-author, because the stories told here do not have a fixed ending; they remain in dialogue with other narratives of so many “others and others” that live in each of us.
The Artworks: Shortcuts to Freedom
According to Indian mythology, the world was created many times. And each time it took a different form. Moreover, as soon as it was finished, the new world rested on the back of a turtle. And this process was repeated uninterruptedly: with each new world, a new “further down turtle” arose and supported another new world. Thus, each world was different but similar, as it was related, but also profoundly separate, in the difference that it established with the others.
“Freedom” was a very precious word in Brazil during the slavery era, which for more than four centuries maintained the same system and which, moreover, became naturalized. Freedom was, therefore, a difficult good to achieve and even more complicated to maintain. With the Republic – a system of government based mainly on
two concepts, equality and liberty – the reality was not substantially changed in this country.
But with Abolition – which came in May 1888, with a short, conservative and noninclusive law – the black populations had to construct their own arrangements and forms of emancipation. Black newspapers, activism, schools, mobilizations and political movements represented ways of making freedom a broader reality, while upgrading democracy. We know, however, that we are far from that utopia, in a country that still practices genocide against blacks and where black women are the major victims of violence and rape.
But in Atalho para a Liberdade [Shortcut to Freedom], Flávio Cerqueira, as is his custom, inverts the most obvious pathways and routes. To begin, the artist revolutionizes our visual logic. The bronze, a very heavy material, looks tenuous insofar as it is supposedly suspended by three balloons. The seemingly lightweight girl closes her eyes, raises her arms, as though she were floating – as the path to freedom would have to be. With her, everything seems to fly, with the bronze unexpectedly revealed as rarefied.
The link that connects the balloons with the body of the character is her hair, raised up to become something like a stout rope. From below, one can only see her shoes, tennis shoes, in a contemporary version of this sort of symbol par excellence of freedom in Brazil. As is widely known, during the period of slavery one of the ways of distinguishing the ladies from their attendants was to look at their feet: only the former wore shoes. For this reason, with the arrival of the late-coming freedom in Brazil, many formerly enslaved people, both men and women, bought shoes, and were unable to wear them, as they were so unaccustomed to that, and instead wore them as a sort of trophy, slung over their shoulders.
Also in this sculpture they appear like trophies. After all, their soles are what is seen the most from below the work. Thus, if in general the soles of shoes are basically made to be invisible – not to be seen – in this case they take on a prime importance. They are what touch on reality.
In this world, it is they, the shoes, which are the “shortcut,” the shortest path “to freedom.” As far as the rest goes, everything is bronze: the three balloons, the thick hair raised in a sort of cone shape, the face looking upward like that of a baroque angel, the clothing that floats in the air, the winglike arms. Lightness made from weight.
Como se o silêncio dissesse tudo
In this sculpture, whose title means “As though the silence said everything,” half of a woman’s body is spotlighted, in an enigmatic way. Carefully configured hair, thick eyebrows, closed eyes looking downward reveal someone concentrated on her work. The expression is serene, with the mouths of two cups pressed over her ears. What is it that our protagonist is so attentively listening to?
Looking carefully, we see the outlines of another enigma. In this scene, we can glimpse a reference to a traditional game played with cups and string. The problem is that we don’t know what our protagonist is asking, and much less the answer that she wants to hear. This is to say, she is in a situation where hearing is difficult, with interruptions and a lot of noise.
Perhaps she wants to escape from this world, to concentrate on another one, her imagination. But we cannot know for sure, as there are not enough clues. What remains is the doubt that is often more productive than an affirmation.
We are standing before a black woman who harbors a secret. Every artwork bears secret – that which insists on not being revealed at first sight. Or perhaps this is a sculpture that is more closely akin to the open structure of a short story. It is up to the observer to find its meaning and close the circle of the story.
For her part, the woman appears overly absorbed in her secret. Perhaps she is listening to the awesome sound of silence?
Cansei de aceitar assim
A girl, with her beautiful body well delineated, is leaning backward against a prominent sign where we read the word “STOP.” The meaning contained in the word is sufficiently strong and conventional to not leave any sort of doubt. It is a sort of order, a warning, not to go further. It is not even necessary to read it, in order to know what the message is. With a stately posture, she is holding her body erect, her hair tied up, her right leg slightly bent and a gaze that seems to be looking into the future.
Flávio says that this was the only work he produced with the aid of a live model. There are, therefore, questions from the history of art present in this work. But, in this case, instead of a submissive, passive position, of someone just there to be looked at, this girl
has an active and unavoidable role in the work. In this sense, she is also the author of this sculpture.
Cansei de aceitar assim [I’m Tired of Accepting Like That] purposely subverts the conventions of this genre. In sculptural production there is a great predominance of depictions of men, who are generally well-known figures, with their features carefully represented. In the case of women, not only are there fewer works dedicated to them, but even these are normally nude, anonymous and unknown girls; they are nothing more than models.
We therefore see that the posture here is political – an interpretation that is consistent with the work’s title. In a country like Brazil, in which for a long time the existence of true cultures of rape and sexual violence against women, especially black women, was not recognized and much less reported, this work, for all its artful beauty, also serves the double function: it warns, challenges, invites, but also charms.
This is a full but “unavailable” body. A proud body and one that decides to show itself, rather than one that is somehow compelled to do so.
But this is also a story of limits. Of “stop,” right there, no more. A work made by a male artist, but one who denounces aggressions in this country in which misogyny is a language and a recurrent form of admonition, and where the term “feminicide” did not enter the dictionary until 2015.
“Stop right there,” because that is the limit, as a model and reality; a model made into reality.
Better together (or “two is a double”)
A sort of crossbar delimits a field of possibilities. Erect, one woman/girl, with less femininized features, supports another on her shoulders. The former is standing on a crate which, though made of bronze, looks like wood. Like a theater of the absurd, the second girl is resting her hand on the wall, and is using paint to write on this white surface the phrase “Better together.” In her hand she is holding a roller also made a bronze, but which looks like it is made of wood and sponge, challenging the space. A space made of freedom: of a force that arises in double, in two.
This situation and the sentence shed light on the context that is then projected: two is always better. Placed in the setting of this exhibition, in which there are many strong women, shown all together, the phrase is even more meaningful: together we are much stronger and we fight for freedom.
The scene is nearly a summary of the many meanings present in this show. A união faz a força [From Union Comes Power] the popular phrase goes. Or then again “ninguém larga a mão de ninguém” [keep tight hold of each other’s hand], a phrase intoned by activist and city councilwoman Marielle Franco, assassinated in cold blood in March 2018.
Para dar nome às coisas
Everything began with the phrase: “to study is to give a name to the things.” This phrase echoed a saying by ethnologist Claude Lévi-Strauss, who once stated that things are first classified, to then gain meaning, not the other way around.4 This concept is also present in the famous book by Michel Foucault, The Order of Things, in which the philosopher examines the meaning of the classifications.5
Humans are beings that classify things, who aim to name everything and thus understand. And this is the drive that took form in the work that Flávio Cerqueira titled Para dar nome às coisas [To Give a Name to the Things].
In this highly touching sculpture, we see a teenage girl with her body tilted slightly forward, just enough so that she can better use the object she is holding in her hands: a spyglass. Absorbed in this action, she has lost all awareness of herself, trying to observe a world she does not know; outside of the place she is at. The telescope leads to other galaxies, to distant places, and reveals the desire to search for what is different, the unknown.
It also reveals the activity of the scientist who, based on his or her knowledge, and recognition, aims to name – and thus invent – stars, comets and planets. This impulse is part of humanity itself, which yields to the luxury of “discovering” that which often already existed even before humankind. It is also part of the curious attitude of the girl who escapes from her context based on the gesture of inaugurating something new: a form of freedom. A hiding place, a form of escape.
4 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2016. 5 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
As Paulinho da Viola sang: “as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender” [the things are in the world, I just need to learn them].
Um mundo de cada vez
The title of this work, Um mundo de cada vez [One World at a Time] is actually what is presented by each of the sculptures featured in the show. As in all good tales, these short stories do not come together with an instruction manual or an easy solution; rather, it is as though we will find them closed off in their own meaningful deliriums.
Through the mastery of Flávio Cerqueira, this exhibition presents many stories in just one. A story adeptly arranged between the marble and the bronze, among women united in their protagonism, in their struggle for freedom. This is a strong utopia in this country that is still fighting for equality and searching for its democracy.
Freedom is a theme that binds together all the artworks present in this exhibition. A girl who escapes from her world equipped only with her balloons that carry her up toward outer space; a teenage girl who dreams about a place beyond the frontiers that she knows; two girls who find the space of expression, together, and reveal that the good change needs to be collective; a girl who holds the symbol of “STOP” in her hands, but who, paradoxically, gains a sense of autonomy; a lady who listens to her two cups and thus achieves her freedom, far from everything and from everyone.
It is impossible to not make a parallel with the period in which we are living. All of these female characters seem to be looking for some sort of escape, searching for a hypothetical change, a new situation, an exit from this phase of reclusion and social distancing.
While there are many different “tales” built into the sculptures, they share in common this undisguised desire for a freedom that goes beyond particular contexts: freedom in relation to a determined situation; freedom in the search for another physical space.
In a stifled Brazil, squeezed under a certain cover of forgetfulness and invisibility, especially in regard to black people, the sculptures by Flávio Cerqueira assert a demand for freedom. Together, but different, they are the expression of an oppressive context, but are also the representation and projection of myriad possibilities for a better world, to which one can escape.
In this sense, they are also converted into symbols of this country that may seem as malleable as the process of production in bronze, but as rigid as the final sculptures. They are thus apt symbols of this nation that needs to be refounded, to be born “each time around,” in order to root out the racism which, being a naturalized practice in Brazil, bars it from achieving its republican form.