FLÁVIO CERQUEIRA E A PROMESSA DE UMA OBRA
Tadeu Chiarelli
Em meados de 2010, quando me hospedei na casa de campo de uma amiga, convivi por alguns dias com um exemplar de Ex Corde, produzido naquele ano por Flávio Cerqueira. À beira da piscina era, de fato, o lugar mais apropriado para situá-la: um espelho d’água razoavelmente profundo, cercado por pedras esbranquiçadas, formava uma perspectiva propícia para a pequena escultura branca, instalada ao lado da piscina, representando um jovem cabisbaixo com um buraco no coração. Afirmar que aquele era o lugar apropriado para ela não significa estabelecer, no entanto, que havia uma perfeita integração da peça com o ambiente, pelo contrário. De início, inclusive – e dependendo do ângulo de visão – era difícil discerni-la, em sua configuração toda branca, na brancura do chão. Porém, quando ela conseguia, enfim, destacar-se íntegra do entorno, a peça mantinha-se voltada para si mesma, completamente alheia ao ambiente, situação que a tornava ainda mais interessante.
Por outro lado, vista a partir de certo ângulo, de dentro da piscina, Ex Corde se transformava numa figura que bem poderia protagonizar uma pintura hipotética de Giorgio De Chirico. No fim de uma perspectiva formada pela água, Ex Corde, lá no fundo, destacava-se contra o verde do bosque, no último plano, o que acentuava, em muito, a melancolia que dela emanava.
A partir daquela experiência, comecei a acompanhar com atenção o trabalho de Flávio Cerqueira que, no início, como em Ex Corde, produzia pequenas esculturas em bronze, recobertas por tinta branca eletrostática. A brancura das peças lhes conferia uma aparência de fragilidade como se tivessem sido feitas em porcelana . Essa impressão de fragilidade era confirmada, por sua vez, pela própria configuração das mesmas que representavam figuras masculinas (crianças ou jovens) ensimesmados, alheias a tudo o que se passava no entorno.
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Em certa medida, a intenção de constituir um conjunto de esculturas a partir de peças figurativas produzidas em bronze, pintadas de branco, podia ser vista como uma audácia por parte de Flávio, dentro do cenário brasileiro de arte.
Para segmentos influentes do circuito local, a “verdadeira” arte brasileira contemporânea seria aquela que, tributária das experiências concreta e neocontreta dos anos 1950/60, se desenvolvesse sempre como “continuidade” ou “superação” das mesmas. Nesse quadro repleto de regras nem sempre explicitadas – várias delas ainda marcadas pela experiência da arte moderna –, as peças de Flávio incorriam em dois pecados: eram produzidas em bronze, um material considerado nobre e ligado à tradição anterior à modernidade na arte e, para completar, (e aqui estaria o segundo sacrilégio do artista), o bronze, esse material tão preso à história e às convenções, quando trabalhado por Flávio, era sempre recoberto de tinta branca eletrostática. Ou seja: o artista, além de se valer do bronze, ainda por cima escamoteava sua “verdade” matérica, pintando-o de branco, simulando uma falsa fragilidade, o que significava “mentir” para o espectador.
O artista, além de não explicitar a “verdade” do bronze, escondendo-a sob o branco, cometia mais duas heresias: a primeira, (ou a terceira da lista) ligava-se ao fato de que suas peças não dialogavam com o entorno e isso se dava, não por um desejo de autorreferência ou autossuficiênica da forma (o que estaria de acordo com certos pressupostos da primeira modernidade na arte), mas porque elas operavam como alegorias (e essa seria a última e mais grave heresia).
Para os modernistas mais inflexíveis, reconhecer um artista como um alegorista era como lançar sobre ele e sua produção um anátema, uma maldição com força capaz de retirar-lhe para sempre a possibilidade de ser aceito no cânone moderno.
Mas, as melancólicas esculturas de Flávio, como sabemos, não estavam sozinhas. Se a proposta de uma arte brasileira apenas identificada com a matriz concreta/neoconcreta fortalecia suas próprias posições desde ainda os anos 1970, a partir da década seguinte passam a emergir ou a ganhar força produções de artistas que, cada vez mais se distanciam daquelas matrizes (aliás, muito importantes) dos anos 1950/60, e ainda de outras bases de uma modernidade mais ortodoxa.
Lembro aqui da produção de Tunga, por exemplo, que, a partir sobretudo dos anos 1980, deixa ainda mais clara a forte aderência a uma subjetividade próxima de matrizes simbolistas e mesmo surrealistas (correntes execradas por modernistas empedernidos e presos à autorreferência da obra de arte). Ou então a produção de Nelson Félix aqui também poderia ser convocada, para lembrar que a carga simbólica que sempre esteve presente em sua produção, o afastava de uma aderência, mesmo remota, às formulações de tradição moderna mais ortodoxa.
A década de 1980 também será o período de emersão da produção de artistas que trarão outras perspectivas para a arte que então se produzia no país. Entre elas é importante lembrar dos trabalhos de Leda Catunda, em que o humor se entranhava a uma postura irreverente quanto à arte tradicional e à arte moderna, assumindo também uma dimensão alegórica renovada e crítica.
A produção de Leonilson igualmente concorrerá para outra guinada no cenário da arte do país, sobretudo durante os anos 1990, quando sua produção passa a ser notada como uma das primeiras a abrir terreno, no Brasil, para práticas que recolocavam de novo a “figuração” em primeiro plano, plasmando-a a sentidos alegóricos e, ao mesmo tempo, biográficos.
Aos poucos, e ainda nesse mesmo período, essa tendência foi ganhando novos adeptos direta ou indiretamente imersos no mesmo clima romântico/simbolista (e às vezes mórbido) e na mesma liberdade icnográfica em que se destacou a produção do artista cearense.
Em paralelo poderiam ser elencadas as produções de Keyla Alaver, Dora Longo Bahia e Nazareth Pacheco. Cada um à sua maneira, os trabalhos dessas artistas introduziram naquele final de século outros paradigmas que não aqueles surgidos por aqui nos anos 1950/60. E não apenas eles. É preciso lembrar também das pinturas de Monica Nador, assim como nos trabalhos de Caetano de Almeida, Edgar de Souza e Iran do Espírito Santo, entre outros, que abriram possibilidades distintas para a arte que então se produzia.
Se os nomes aqui elencados apontam para produções muito díspares entre si, todas confluem, porém, para o uso de signos com forte apelo referencial, tendo como raiz comum – não é possível esquecer – as produções de dois artistas mais velhos, que haviam sido professores da maioria deles, e que não haviam soçobrado ao vagalhão da modernidade que se pautava apenas na especificidade da linguagem (ou em sua superação performática/comportamental). Refiro-me a Nelson Leirner e Regina Silveira (ambos ex-professores da FAAP, sendo que a artista também atuou como docente na ECA USP) .
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De volta à sequência cronológica esboçada, deve-se incluir nesse contingente de artistas que despontou na cena brasileira (ou, vá lá, paulista) do final do século passado, jovens ainda um pouco mais jovens que os já citados: Sandra Cinto, Elias Muradi, Albano Afonso, Rosana Paulina e Sidney Amaral, entre outros – artistas que, junto aos já elencados, passaram a inundar o cenário da arte, praticando uma espécie de erosão de certas verdades de extração moderna ainda presentes no ambiente brasileiro.
Assim, configurando esse outro quadro que vai se formando na cena paulistana no final do século XX, a produção de Flávio Cerqueira, que se inicia justamente em 2009, não estava só. Pelo contrário: ela se somava a essa outra corrente da arte aqui produzida, relativizando proposições artísticas e estéticas tidas, muitas vezes, como dogmas. E as peças de Flávio juntavam-se a essa outra corrente, não apenas pela formulação de uma iconografia explícita e com conotações alegóricas e/ou autobiográficas. Mesmo o uso pouco ortodoxo que Flávio fazia do bronze tradicional, cobrindo-o de branco (misturando, portanto, escultura e pintura – outra heresia para os modernistas) relacionava-se positivamente à liberdade com que Sandra Cinto conjugava num mesmo trabalho elementos vindos da escultura, da foto-performance e do desenho, assim como também se relacionava com os objetos insólitos produzidos por Nazareth Pacheco, ou com os objetos e instalações de Sidney Amaral (outro artista que não se vexava em cobrir seus bronzes com cor).
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O segundo trabalho de Flávio Cerqueira que me chamou a atenção – Foi assim que me ensinaram, 2011 –, representa um menino usando um chapéu tradicionalmente tido como “chapéu de burro”, sentado sobre uma pilha de livros reais, voltado para a parede.
Única peça produzida pelo artista em porcelana em um estágio em Portugal , nela, no entanto, percebia-se a mesma situação de isolamento, de não pertencimento ao lugar, encontrada nas outras esculturas do artista. No entanto, nela, o retraimento parecia não se dar (ou não se dar apenas) pela vontade do personagem ali representado. A figura do menino sentado sobre uma pilha de livros reais, aludia a um espaço também real (uma sala de aula) e parecia assumir aquela posição, motivada, não por um desejo próprio, mas para responder a uma demanda exterior. A figura, sentada de costas para a “classe” e voltada para a parede, obedecia a um castigo, sofrendo uma espécie de desclassificação de cunho social.
Com Foi assim que me ensinaram o artista deixava de aludir àqueles sentimentos de solidão e tristeza aparentemente autoimpostos para representar uma cena que, no limite, estava ligada à tortura moral e física que alguns professores infligiam a alunos que, por razões as mais diversas, não se adequavam às normas da sala de aula. A peça me levou a interpretá-la como uma alegoria possível do processo de exclusão a que várias crianças são submetidas, no país e em outros lugares, por não se adequarem ao processo de formação educacional, mesmo quando nele conseguem penetrar.
A partir dessa compreensão da potência daquela escultura para o desenvolvimento do percurso de Flávio enquanto artista, mas, sobretudo, como símbolo do ensino no Brasil, conclui de que ela devia pertencer a uma instituição pública.
Como, na época, dirigia o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), me esforcei e consegui fazer com que a escultura passasse a integrar o acervo daquela instituição. Minha intenção era que ela fosse exibida logo na entrada do Museu, em primeiro lugar, como uma espécie de aviso para alertar a todos os visitantes de que o MAC USP estava consciente das mazelas do sistema educacional (sistema esse que, no limite, todos os museus integram).
Por outro lado, desejava que Foi assim que me ensinaram atuasse como uma espécie de espelho para qualquer jovem insatisfeito por estar entrando no Museu, sentindo-se obrigado/a a estar ali com a família ou com a escola, num museu que, aparentemente, nada teria a lhe comunicar e que, pior, o/a deixaria sentindo-se como um “burro”, ou uma “burra”, por acreditar que nada entenderia do que ali estivesse sendo exibido. Queria que esse/a jovem, ao contemplar a escultura concebida por Flávio, percebesse que aquela instituição entendia como ele/a se sentia e que, mesmo assim, o/a acolhia. Era minha intenção que ele/a entendesse que o MAC USP estava consciente das dificuldades que o entendimento da arte pode apresentar num primeiro momento, mas que a instituição estava ali para cooperar naquele processo de aprendizagem.
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Como os livros em Foi assim que me ensinaram, a peça Antes que eu me esqueça, 2013, também se utilizava de objetos reais em conjunção com uma escultura representando uma criança. Além disso nela me chamou a atenção a potência do micro universo criado pela escultura representando um garoto, (em bronze pintado de branco) e um espelho real – parte integrante daquela proposta do artista.
Observando o conjunto formado pela escultura propriamente dita e o espelho , era impossível não perceber o reflexo da figura representando o menino, concomitante à percepção da própria escultura e do espelho reais; além, é fato, do reflexo do próprio espaço em que a obra estava inserida.
Então diretor geral da Pinacoteca de São Paulo, propus e consegui que a obra fosse adquirida pela instituição, em 2015. Antes que eu me esqueça – por decisão do Educativo do Museu – foi colocada no espaço expositivo destinado à Coleção José e Paulina Nemirovsky (então em comodato na Pinacoteca), provocando, de novo, a mesma sensação que a outra escultura de Flávio, adquirida para o MAC USP, provocava: afinal, tratava-se da figura de um menino voltada para a parede. A única diferença era que essa tinha à frente um espelho que a refletia, assim como a sala onde ela era exibida e os visitantes que paravam para admirá-la. Nela também era perceptível a mesma situação de exclusão, de não pertencimento, motivada por questões não apenas de cunho subjetivo, íntimo, mas social. Por sua vez, essa sensação era ampliada pelo fato do menino ali representado possuir características de uma criança negra, apesar da escultura também estar pintada de branco.
Flávio, com essa demarcação étnica explícita, reforçava várias questões ligadas à sua própria ancestralidade, ativando, como consequência, a significação da exclusão de pessoas negras nos espaços institucionais do país .
A recepção do público, ao encontrar a obra de Flávio em uma das salas sobre o modernismo brasileiro, da referida Coleção Nemirovsky, foi positiva. Sua presença ali suscitava (e ainda suscita) indagações sobre a questão da inclusão social, além de fazer emergir. em muitos dos visitantes, um processo de identificação com a escultura no espelho, no fato de que parte dele tendia a agachar para ficar mais próxima da escultura e do próprio reflexo (o que resultava, e resulta, em vários selfies que depois são espalhados pelas redes sociais).
Estou certo de que a colocação de Antes que eu me esqueça naquela sala da Pina Luz contribuiu, não apenas para que a produção de Flávio pudesse ganhar visibilidade junto a um público maior, como também permitiu que o próprio artista revisse a potência de sua produção quando em diálogo com problemas que extrapolavam questões apenas individuais. Também creio no quanto pode ter significado para ele rever sua peça naquele novo contexto, repleto de obras do modernismo, podendo observar a escultura ele mesmo naquela situação que, para Flávio, desde há muito tempo, lhe era impensável .
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Também me pareceu importante para o artista o fato daquela obra, alguns meses depois ter participado da mostra “Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca”, que organizei em 2016 na Pina Estação.
Pensada como uma homenagem ao artista Emanoel Araújo por suas atividades como antigo diretor da instituição, “Territórios” apresentava, ao lado de obras produzidas por artistas negros já pertencentes ao acervo, obras de jovens artistas afrodescendentes recém-adquiridas. Talvez uma das primeiras exposições deste século, fora do Museu Afro Brasil, a apresentar em São Paulo, o afrodescendente não como objeto do escrutínio do artista (quase sempre branco), mas como produtor de poéticas individuais, “Territórios” possuía uma de suas salas dedicada exclusivamente à exibição dos trabalhos de Sidney Amaral, Rommulo Vieira Conceição, Jaime Lauriano, Paulo Nazareth, Rosana Paulino e de Flávio Cerqueira. Naquela situação foi possível perceber o espelho que integrava a peça do artista refletindo um espaço especial, povoado de obras de produtores com a mesma ascendência de Flávio.
Apesar de voltada para seu próprio reflexo – e justamente por isso –, Antes que eu me esqueça ensinava mais uma vez ao seu autor o quanto o contexto em que uma obra estivesse inserida poderia modificar e ampliar suas potencialidades de significação.
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A despeito do título de sua individual de 2013, na Galeria Triângulo, “Ensimesmado”, na mostra, ao lado de outras esculturas representando figuras voltadas para si mesmas, depositadas sobre pedestais ou situadas diretamente no chão, foram exibidas outras peças em que as figuras demonstravam desejos de extrapolar os limites dos pedestais e mesmo da Galeria, para saltarem ou mesmo voarem.
Por isso, não foi com surpresa que, em 2015, ao visitar o antigo Paço das Artes de São Paulo, me deparei com um novo trabalho do artista, Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim. O trabalho decididamente era uma instalação concebida a partir de um espaço específico existente na sala de exibição do Paço. Ali, Flávio criou uma fonte. No centro da grande bacia uma escultura em bronze representava um menino segurando um regador de plantas que jogava água em seu rosto. De sua cabeça aberta no topo, brotava uma goiabeira.
A escolha de um lugar específico dando origem à obra; o corpo da escultura, como agente que nutre, com a água, a si mesmo, e, de sua cabeça, faz brotar a vida. Todos esses dados me informavam que Flávio agora conduzia sua produção para a incorporação efetiva do mundo, para um forjar-se nele, explorando seus aspectos físicos e simbólicos.
Apesar do título da instalação – que fazia referência, em chave invertida, à célebre obra produzida em 1930 por Cícero Dias, Eu vi o mundo, ele começa no Recife –, o certo é que ela surgia e se expandia no entorno, sendo, em grande medida, dependente dele.
Se na individual de 2013 era perceptível, nas alegorias exibidas, o desejo de voar, de cair no mundo, na instalação produzida para o antigo Paço, esse desejo se concretizava – um sinal importante de que Flávio passava a entender sua produção, não apenas como a emanação de seu eu, mas também como peças em diálogo com o espaço físico e simbólico que o rodeava.
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Em 2016, enquanto organizava a mostra “Metópole: experiência paulistana”, que seria inaugurada no ano seguinte na Pina Estação, ao visitar a nova mostra de Flávio na Galeria Triângulo, deparei-me com a escultura Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante), produzida naquele ano. A peça configurava-se como uma máscara gigante, representando um homem barbado, produzida em bronze. Ao observá-la, me pareceu o pedaço de um velho monumento, jogado ao acaso no chão.
Devido à preparação de “Metrópole, estava atento à revisão que alguns jovens artistas vinham fazendo da figura do bandeirante, identificando-o não mais como herói, mas como agente de repressão, subjugando e exterminando segmentos mais frágeis da população brasileira (leia-se índios e negros). Assim, imediatamente pensei que Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante) deveria participar da mostra ao lado de obras de Jaime Lauriano e Sidney Amaral, artistas que também desconstruíam o mito do bandeirante (caso específico da produção de Lauriano) ou se opunham às operações de repressão dos “novos bandeirantes” (caso de Amaral). Por suas dimensões, não foi possível situar a peça na sala onde seriam exibidas as obras dos outros dois artistas. Assim, a opção foi colocá-la em frente à fachada posterior da Pina Estação, “olhando” para a bandeira do estado de São Paulo, colocada no topo do edifício que sediava a antiga Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo contíguo ao Museu.
Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante) configurou-se como um ponto de inflexão na trajetória de Flávio Cerqueira. Daquela obra em diante nota-se em seu percurso uma tendência cada vez mais acentuada no sentido de deixar em segundo plano as questões individuais que mais o mobilizavam, para tentar trazer para suas novas peças, sentidos coletivos mais evidentes.
Assim, me parece exemplar a escultura Em memória de mim, de 2017. Apesar, de novo, da autorreferência presente no título, a obra, a meu ver, demonstra como o artista, mesmo colocando-se como referência no título da escultura, continua enfatizando uma preocupação com o coletivo, no caso, os afrodescendentes escravizados ou em situações subalternas de trabalho.
A referência de Em memória de mim surgiu quando Flávio, em Florença, convidado pelo curador nigeriano, residente em Nova York, Awan Amkpa, para participar da mostra “ReSignifications”, conheceu uma importante coleção de esculturas conhecidas como blackamoors. Blackamoors são representações de escravos ou lacaios negros (normalmente produzidas em madeira policromada, ou bronze), carregando castiçais, tochas, bandejas etc. Itens de decoração em interiores supostamente requintados, as esculturas de blackamoors há séculos retratam sobretudo homens negros em atitudes subservientes como índices de exotismo, marcados pela diferença e pelo preconceito do homem branco europeu (mais recentemente, também norte-americano).
Flávio retira de seu “blackamoor” qualquer idealização e exotismo. Retira-lhe até os castiçais onde deveriam estar as velas que queimam diretamente sobre suas mãos. Por outro lado, ao contrário de muitas de suas esculturas anteriores, a figura representada não olha para baixo, não parece nem um pouco voltada para si mesma, para seus desejos ou frustrações. Olha para a frente, impassível e confiante.
A tradição dos blackamoors renderia a Flávio pelo menos mais uma obra importante: Uma palavra que não seja esperar, de 2018. A peça representa uma garota negra caminhando resoluta, tendo sobre a cabeça, uma pilha de livros. Foi a primeira vez que, em sua trajetória, a figura do garoto é substituída pela figura de uma jovem negra, demonstrando outro momento do processo poético do artista em que, representar uma mulher, expande seus questionamentos para outras esferas de sentido.
É preciso lembrar que, na tradição das esculturas de blackamoors não são tão comuns representações de mulheres negras, mas elas existem. São inexistentes, entretanto, aquelas que representam mulheres em posições de altivez frente à realidade. E mais: se bem analisarmos, a jovem negra que caminha segurando livros na cabeça, não necessariamente estaria trabalhando para alguém como uma blackamoor convencional, carregando os livros para que outro ou outra os lessem. Por sua postura, aqueles livros lhe pertencem.
Me parece interessante estabelecer aqui, mesmo que de maneira breve, uma comparação entre Uma palavra que não seja esperar e a escultura que hoje pertence ao MAC USP, aqui já comentada, Foi assim que me ensinaram. Nessa última, o garoto é representado sentado sobre livros reais, como um sinal da sua impossibilidade em estabelecer uma relação efetiva com as publicações. Essa sensação de impossibilidade, por outro lado, é intensificada pela diferença que os separa: enquanto o garoto se constitui em branco, uma imagem abstraída do real, os livros são os próprios índices daquilo que a escultura do garoto não é.
Por sua vez, em Uma palavra que não seja esperar, a mulher e os livros sobre sua cabeça formam uma unidade material, uma única imagem em que a representação dos livros e da jovem se juntam e se confundem, um grande salto dentro do curto percurso de Flávio enquanto artista.
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Uma palavra que não seja esperar foi concebida por Flávio, atendendo ao convite do curador norte-americano Dan Cameron para participar da mostra “Open Spaces”, em 2018. A peça foi pensada para ser exibida no jardim do Departamento de Artes, no campus da Universidade do Missouri, em Kansas City, Estados Unidos. Transcorridos os três meses da mostra, a escultura foi retirada, sendo reinstalada no mesmo local um ano depois, agora em definitivo, uma vez que um grupo de colecionadores da cidade comprou a escultura para doá-la à instituição.
Uma palavra que não seja esperar apresenta-se como outro momento fundamental na carreira de Flávio. Nela, ao mesmo tempo em que se concentram muitas das etapas do processo de estruturação inicial do seu vocabulário plástico, nota-se também que significa o início de um novo momento em que, talvez, questões de caráter individual, ou mesmo aquelas ligadas à identidade de gênero masculino, se abrirão para abranger problemas até agora não explorados pelo artista.
Ainda reduzido (faz pouco mais de dez anos que Flávio Cerqueira se dedica profissionalmente à arte), o corpo de trabalhos formado pelo artista nesses poucos anos de atividade atesta os vários saltos que sua produção sofreu, deixando a timidez inicial e assumindo agora uma desenvoltura que se transforma numa promessa de obra a ser de fato constituída e consolidada enquanto poética.
FLÁVIO CERQUEIRA AND THE PROMISE OF AN OEUVRE
Tadeu Chiarelli
In mid-2010, when I was staying at the country house of a friend, I spent some days in close relation with one of the multiples of the sculpture Ex Corde, produced that year by Flávio Cerqueira. It was installed in a very suitable place for it there, alongside the swimming pool: in a reasonably deep reflecting pool, surrounded by whitish stones, which formed an apt perspective for the small white sculpture, representing a downcast young man with a gaping hole pierced through his body where his heart would be. Stating that it was installed in a place that suited it well does not mean to imply, however, that there was a perfect integration between the piece and its environment. In fact, the opposite was true. At first sight, depending on the angle of view, it was difficult to notice it, in its totally white configuration, on the whiteness of the ground. But once it managed stand out wholly from its surroundings, the piece remained focused on itself, completely aloof to the environment, thus making it even more interesting.
On the other hand, seen from a certain angle, from inside the swimming pool, Ex Corde was transformed into a figure that looked like it was straight out of a hypothetical painting by Giorgio De Chirico. At the end of a perspective formed by the water, Ex Corde, there at the back, was highlighted against the green of the forest, in the background, which greatly accentuated the sculpture’s sense of melancholy.
Based on that experience, I began to pay a lot of attention to the work of Flávio Cerqueira who, at the outset, as in Ex Corde, produced small bronze sculptures covered by white electrostatic paint. The whiteness of the pieces gave them an appearance of fragility as though they were made of porcelain. This impression of fragility was confirmed by the configuration of the works, which represented male figures (boys or young men) immersed in thought, aloof to everything that was going on around them.
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To a certain extent, the intention to constitute a set of sculptures based on figurative pieces produced in white-painted bronze could be seen as audacious on Flávio’s part, within the Brazilian art scene.
For influential segments of the local circuit, the “true” Brazilian contemporary art was that which was derived from the concrete and neoconcrete experiments of the 1950/60s, always being developed as a “continuity” or “surpassing” of them. In this context full of often unstated rules – some of them still marked by the experience of modern art – Flávio’s pieces committed two sins: the first was that they were produced in bronze, a material considered noble and linked to the tradition that came before modernity in art. Flávio’s second sacrilege was that when he worked with bronze – a material heavily charged with the history and conventions of art – he always covered it with white electrostatic paint. That is: besides using bronze, the artist moreover concealed its “true” material nature, painting it white, simulating a false fragility, which meant he was “lying” to the spectator.
Besides not allowing the “truth” of the bronze to appear, hiding it under the white, the artist committed another two heresies as well: the first (or the third on the list) was linked to how his pieces did not dialogue with the surroundings. And this lack was not due to a desire for self-reference or self-sufficiency of the form (a desire consistent with certain presuppositions of the first modernity in art), but because they operated as allegories – this being the last and most serious of the heresies.
For the most inflexible modernists, recognizing an artist as an allegorist was like casting a curse on him with the power of barring him forever from the possibility of being accepted in the modern canon.
But, Flávio’s melancholic sculptures, as we know, were not alone. While the proposal of a Brazilian art identified only with the concrete/neoconcrete matrix had strengthened its own positions since the 1970s, beginning in the following decade artworks began to emerge and gain force, produced by artists who were increasingly distanced from those matrices from the 1950s/60s (though they were still important), as well as from other bases of a more orthodox modernity.
Here I recall, for example, the production of Tunga, who, mainly after the 1980s, was more clearly linked to a subjectivity with strong symbolist or even surrealist leanings (trends abhorred by fossilized modernists still espousing the artwork’s self-referential nature). Or then I could also refer to the production of Nelson Félix, to recall that the symbolic charge that was always present in his production kept him at quite a distance from the most orthodox modern formulations.
The 1980s also saw the emergence of works by artists who brought other perspectives to the art that was then being produced in Brazil. Among them, it is important to remember the works by Leda Catunda, in which humor was essential to the irreverent stand she took in regard to both traditional and modern art, also with a renewed and critical allegorical dimension.
Leonilson’s work likewise accompanied another shift in the Brazilian art scene, especially during the 1990s, when his production began to be noticed as one of the first to blaze a trail, in Brazil, for practices that re-situated “figuration” in the foreground, molding it to meanings that were simultaneously allegorical and biographical.
Gradually, and still in that same period, this tendency gained new followers directly or indirectly immersed in the same romantic/symbolist (and sometimes morbid) climate, while also characterized by the same iconographic freedom seen in Leonilson’s works.
Running parallel to this were the productions by Keyla Alaver, Dora Longo Bahia and Nazareth Pacheco. Each in its own way, the works by these artists introduced new paradigms at that end-of-century, different from those that arose in Brazil in the 1950/60s. And not only them. We must also remember the paintings by Monica Nador, as well as the works by Caetano de Almeida, Edgar de Souza and Iran do Espírito Santo, among others, who opened new possibilities for the art then being produced.
While the names listed here point to a wide range of mutually diverse productions, they nonetheless share the same characteristic of using signs with a strong referential appeal, all informed by the productions of two older artists who had been teachers of most of them, and who had not been overturned by the wave of modernity that was based only on the specificity of the language (or on its performative/behavioral surpassing). I am referring to Nelson Leirner and Regina Silveira (both former professors of FAAP, Regina also having served on the faculty of ECA USP) .
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Getting back to the chronological sequence outlined, in this contingent of artists that arose in the Brazilian (or, one could say, São Paulo) scene at the end of the last century, mention should also be made of artists even a little younger than the young artists already cited. These even younger artists would include Sandra Cinto, Elias Muradi, Albano Afonso, Rosana Paulina, Sidney Amaral, and others – artists who, together with those already listed, began to flood the art scene, practicing a sort of erosion of certain truths deriving from the modern movement that are still present in the Brazilian art world.
Thus, considering this other context that was developed in the São Paulo scene at the end of the 20th century, Flávio Cerqueira’s production, which began precisely in 2009, was not alone. On the contrary: he was one more artist in this other branch of Brazilian art, relativizing artistic and aesthetic propositions which had up to then often been taken as dogmas. And the pieces by Flávio were part of this trend, due to the formulation of an explicit iconography that also had allegorical and/or autobiographical connotations, but not only that. Even the unorthodox way that Flávio used the traditional bronze, covering it with white (thus mixing sculpture and painting – another heresy for the modernists) was positively related to the freedom with which Sandra Cinto combined in a single work elements from sculpture, photo-performance and drawing, just as it was also related with the uncommon objects produced by Nazareth Pacheco, or with the objects and installations of Sidney Amaral (another artist who did not shy from covering his bronzes with color).
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The second artwork by Flávio Cerqueira that caught my attention – Foi assim que me ensinaram [This is how they taught me], 2011 – represents a boy wearing a hat traditionally known as a “dunce cap,” seated on a stack of real books and facing the wall.
The only piece produced by the artist in porcelain during a training stint in Portugal, it was nonetheless charged with the same sense of isolation, of nonbelonging to the place, found in the other sculptures by the artist. Nevertheless, in it, the withdrawal did not seem to take place due to the will of the character represented there. The figure of the boy seated on a stack of real books alluded to a space that was also real (the classroom) and seemed to assume that that position was not motivated by the desire of the boy depicted but rather from some outside demand. The figure, seated with his back to the “class” was facing the wall, in obedience to a punishment, suffering a sort of declassification of a social nature.
With Foi assim que me ensinaram the artist was no longer alluding to those feelings of self-imposed loneliness and sadness, but rather to a scene which was linked to the moral and physical torture that some teachers inflicted on students who, for a variety of reasons, did not conform to the rules of the classroom. I interpreted the piece as an allegory of the process of exclusion to which various children are submitted, in Brazil and elsewhere, for not fitting in well with the process of formal education – when, that is, they are even able to enter it.
Based on this understanding of the power of that sculpture for the development of Flávio’s artistic path, but, above all, as a symbol of education in Brazil, I concluded that it should belong to a public institution.
As at that time I was the director of the Museu de Arte Contemporânea of the Universidade de São Paulo (MAC USP), I made every effort to ensure that that sculpture became part of the collection of that institution. My intention was to show it at the museum’s entrance, right at the start, as a sort of announcement to all visitors that MAC USP was aware of the banes of the educational system (a system which, essentially, the museums are also a part of).
On the other hand, I wanted Foi assim que me ensinaram to act as a sort of mirror for any young person dissatisfied for having entered the museum, feeling obliged to be there with his or her family or school, in a museum which, apparently, had nothing to communicate to him or her and which, even worse, made him or her feel like a “dunce,” for believing that he or she would not understand anything that was being shown there. I wanted that young person to contemplate the sculpture conceived by Flávio, and to perceive that this institution understood how he or she felt and that, even so, welcomed him or her. My hope was that he or she would understand that MAC USP was aware of how hard it could be for such a young person to understand art on an initial contact with it, but that the institution was there to cooperate in that learning process.
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Like the books in Foi assim que me ensinaram, the piece Antes que eu me esqueça [Before I forget myself], 2013, also used real objects in conjunction with a sculpture representing a child. In the latter work I was moreover struck by the micro-universe generated by the sculpture representing a boy (in bronze painted white) and a real mirror – an integral part of that proposal by the artist.
Observing the set formed by the sculpture strictly speaking and the mirror, it was impossible not to perceive the reflection of the figure representing the boy, concomitantly with the perception of the sculpture itself and the real mirror; as well as the reflection of the space in which the artwork was inserted.
Then general director of the Pinacoteca de São Paulo, I proposed that the institution acquire this work, which it did, in 2015. Antes que eu me esqueça – by decision of the museum’s education department – was placed in the exhibition space dedicated to the Coleção José e Paulina Nemirovsky (then on long-term loan to the Pinacoteca), once again provoking the same sensation as that other sculpture by Flávio that MAC USP had acquired: after all, it was the figure of a boy facing the wall. The only difference was that in this latter case he was in front of a mirror that reflected him, while moreover reflecting the room in which the sculpture was shown, and the visitors who stopped by to admire it. In it there was also the same perceptible situation of exclusion, of nonbelonging, motivated by questions of a subjective, intimate and also social nature. For its part, this sensation was amplified by the fact that the boy represented there possessed characteristics of a black child, although the sculpture was also painted white.
With this explicit ethnic demarcation, Flávio reinforced various issues linked to his own ancestry, as a consequence referring to the exclusion of black people in the country’s institutional spaces.
Upon finding Flávio’s work in one of the rooms about Brazilian modernism, of the aforementioned Coleção Nemirovsky, the visitors’ reactions were positive. Its presence there gave (and still gives) rise to questions about social inclusion, spurring many visitors to identify with the sculpture in the mirror, demonstrated by how many visitors tended to crouch down to get closer to the sculpture and their own reflection (which resulted, and continues to result, in various selfies that were later spread through the social networks).
I am certain that the placement of Antes que eu me esqueça in that space (the Pina Luz room) contributed not only to Flávio’s production gaining visibility with a larger public, but it also allowed the artist himself to see the power of his production when in dialogue with problems that go beyond merely individual questions. I also believe that it could have been very meaningful for him to see his piece in that new context, full of works of modernism, thus being able to observe his own sculpture in a situation that for a very long time had been unthinkable to him.
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I furthermore thought it was important for the artist to have also seen that work participate, a few months later, in the show Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, which I organized in 2016 at the Pina Estação.
Conceived as an homage to artist Emanoel Araújo for his activities as the institution’s former director, Territórios presented, alongside artworks produced by black artists already part of the collection, recently acquired artworks by young artists of African ancestry. Outside the Museu Afro Brasil, Territórios was perhaps one of the first exhibitions in this century to present, in São Paulo, a person of African ancestry not as the object of a (nearly always white) artist, but as a producer of an individual poetics. It had one of its rooms dedicated to the exhibition of works by Sidney Amaral, Rommulo Vieira Conceição, Jaime Lauriano, Paulo Nazareth, Rosana Paulino and Flávio Cerqueira. In that situation it was possible to perceive that the mirror which is part of the piece was reflecting a special space, inhabited by works by artists with the same ancestry as Flávio.
Despite that the figure in Antes que eu me esqueça is focused on his own reflection – and, in fact, for this very reason – the work once again made Flávio aware of the extreme importance of the context in which an artwork is inserted, and how it can modify and enlarge the work’s potentials of meaning.
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Flávio’s solo show Ensimesmado [Close in on Themselves], held in 2013 at Galeria Triângulo, also featured sculptures representing figures focused on themselves, perched on pedestals or standing directly on the floor; but despite its title, the show also included pieces in which the figures evinced desires to go beyond their pedestals and even the gallery, to jump or even fly.
For this reason, it was no surprise when, in 2015, upon visiting the former Paço das Artes de São Paulo, I came upon a new work by the artist, Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim [I saw the world and it begins within me]. This work was decidedly an installation conceived based on a specific space in the Paço’s exhibition room. There, Flávio created a fountain. In the center of the large basin there was a bronze sculpture representing a boy holding a watering can that was sprinkling water on his face. From his head, open at the top, a shrub was growing.
The choice of a specific place giving origin to this work; the body of the sculpture as an agent that nourishes itself with water; and, the fact that life is sprouting from the figure’s head: all of these facts informed me that Flávio was now leading his production to the effective incorporation of the world, to a forging of himself within it, exploring its physical and symbolic aspects.
Despite the installation’s title – which made reference, with a twist of phrase, to the celebrated work produced in 1930 by Cícero Dias, Eu vi o mundo, ele começa no Recife [I saw the world, it begins in Recife] – it nonetheless arose and expanded within its environment, being to a large extent dependent on it.
In his solo show in 2013 the allegories shown included a perceptible desire to fly, to fall in the world, and in this installation produced for the former Paço, this desire was realized – an important sign that Flávio now understood his production not only as an emanation of his ego, but also as pieces in dialogue with the physical and symbolic space that surrounded them.
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In 2016, while organizing the show Metópole: experiência paulistana, which was to be inaugurated the following year at Pina Estação, upon visiting a new show by Flávio at Galeria Triângulo, I came upon the sculpture Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante) [It had to happen (head of a bandeirante)] produced that year. The piece was configured as a giant mask, representing a bearded man, produced in bronze. To me it looked like a piece of an old monument, thrown randomly on the floor.
Due to the preparation of Metrópole exhibition, I was attentive to the revision that some young artists had been making of the figure of the bandeirantes [profit-seeking explorers of the hinterland in colonial Brazil], no longer identifying them as heroes, but rather as agents of repression who subjugated and exterminated the most fragile segments of the Brazilian population (namely, Indians and blacks). Thus, I immediately thought that Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante) should participate in the show alongside works by Jaime Lauriano and Sidney Amaral, artists who also deconstructed the myth of the bandeirante (in Lauriano’s production) or were opposed to the operations of repression of the “new bandeirantes” (in Amaral’s). Due to its size, it was not possible to position the piece in the room where the works of the other two artists were to be shown. The choice was therefore made to place it in front of the back exterior wall of the Pina Estação, “looking” at the flag of the state of São Paulo, on top the building that housed the former São Paulo State Secretary of Culture next to the museum.
Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante) was a turning point in Flávio Cerqueira’s artistic path. From that point onward his work manifested an increasingly accentuated tendency to push into the background the individual questions that mobilized him, in order to impart more evident collective meanings to his new pieces.
An apt example of this is the sculpture Em memória de mim [In memory of me], 2017. Despite, again, the self-reference present in the title, I believe this work demonstrates how the artist, even while placing himself as a reference in the sculpture’s title, continues to emphasize a concern for the collective, in this case, people of African ancestry who are either enslaved or in subaltern situations of work.
The reference of Em memória de mim arose when Flávio, in Florence, was invited by Awan Amkpa, a Nigerian curator residing in New York, to participate in the show ReSignifications, and was introduced there to an important collection of sculptures known as blackamoors. Blackamoors are representations of black slaves or lackeys (normally produced in polychrome wood, or bronze), carrying candlesticks, torches, trays, etc. Decorative items in supposedly sophisticated interiors, the blackamoor sculptures have for centuries portrayed black men in subservient attitudes as signs of exoticism, marked by difference and by the prejudice of the European (more recently, also North American) white man.
Flávio removes from his “blackamoor” any idealization or exoticism. He removes the candlesticks, and in their place puts candles that are burning directly on the figure’s hands. Unlike in many of his previous sculptures, however, the figure represented is not looking downward, he does not seem in any way focused on himself, his desires or frustrations. He is looking forward, impassable and confident.
Flávio went on to make at least one other work referring to the tradition of the blackamoors: Uma palavra que não seja esperar [Any word except wait], 2018. The piece represents a black girl walking resolute, with a stack of books on her head. It was the first time in his career that the figure of the boy was substituted by the figure of a black girl, demonstrating another moment of the artist’s poetic process in which, by representing a woman, he expands his questionings to other spheres of meaning.
It must be remembered that although there are few representations of black women in the tradition of the blackamoor sculptures, they do exist. There are none, however, that represent women in noble attitudes in face of reality. Moreover, careful analysis reveals that the black girl that is walking with books on her head is not necessarily working for someone like a conventional blackamoor would be, carrying books for some other person to read. Her posture clearly shows that those books belong to her.
It seems interesting to establish here, even if briefly, a comparison between Uma palavra que não seja esperar and the sculpture that today belongs to MAC USP, already discussed above, Foi assim que me ensinaram. In this latter work, the boy is represented seated on real books, like a sign of the impossibility of his ever establishing an effective relationship with those publications. This sensation of impossibility, on the other hand, is intensified by the difference that separates them: while the boy is constituted in white, as an image abstracted from the real world, the books are the signs of that which the sculpture of the boy is not.
For its part, in Uma palavra que não seja esperar, the woman and the books on her head form a material unit, a single image in which the representation of the books and of the girl are combined and blended, a large leap within Flávio’s short path, so far, as an artist.
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Uma palavra que não seja esperar was conceived by Flávio in response to the invitation by North American curator Dan Cameron to participate in the show Open Spaces, in 2018. The piece was designed to be shown in the garden of the Department of Arts, on the campus of the University of Missouri, in Kansas City, United States. After the show’s three-month run, the sculpture was taken away, but was then reinstalled in the same place one year later, this time permanently, since a group of collectors in the city bought the sculpture to donate it to the institution.
Uma palavra que não seja esperar marks another fundamental moment in Flávio’s career. While many steps in the process of the initial structuring of his artistic vocabulary are brought together in it, we also note that it signifies the beginning of a new moment at which, perhaps, questions of an individual character, or even linked to the identity of the masculine gender, will be opened to deal with problems unexplored by the artist up till now.
Although his oeuvre is still relatively small (Flávio Cerqueira has been professionally dedicated to art for only a little more than ten years now), the body of works formed by the artist in these few years of activity attests to the various leaps his production has undergone, leaving behind the initial shyness to now assume a boldness that is transformed into a promise of his work to be constituted and consolidated as a poetics.