Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim
These are really the thoughts of all men in all ages and lands, they are not original with me;
If they are not yours as much as mine they are nothing, or next to nothing;
If they are not the riddle and the untying of the riddle they are nothing;
If they are not just as close as they are distant they are nothing;
This is the grass that grows wherever the land is and the water is;
This is the common air that bathes the globe.
Walt Whitman
Ao longo de sua recente trajetória artística, Flávio Cerqueira vem se engajando com material e técnica dos mais antigos e tradicionais: o bronze e a cera perdida. É um método que existe desde a descoberta dessa liga metálica em algum momento no século III a.C.. O peso de uma tradição de cinco milênios pode ser visto por jovens artistas com um misto de receio, inquietação e desconfiança ou até mesmo desprezo, pois é certo que trilhar os passos de Praxíteles, Donatello, Cellini e Rodin não é tarefa nada fácil e que quem o faz o faz por sua conta e risco. Isso não acontece com Flavio Cerqueira, que combate a técnica e suas possiblidades expressivas com candura e simplicidade notáveis, pacientemente dedicando-se a ela com um olhar desembaraçado pela força da tradição. Dessa forma, ele inadvertidamente dá continuidade a essa mesma tradição, repotencializando-a com uma linguagem e máximas visuais contemporâneas, em nada arcaizantes ou saudosistas.
Se, num primeiro momento, o interesse de Cerqueira em suas esculturas era pelo instante que antecede uma dada ação, retratando os instantes anteriores a sua consumação pela figura, ele agora se interessa em registrar a própria ação, inserindo em suas esculturas em bronze – o material da fixação da ação na arte por excelência –, o próprio movimento. Se ele antes contava a pré-história da ação, ele agora a congela, inserindo o tempo como elemento constitutivo de suas obras, dessa forma expandindo as possibilidades narrativas e poéticas de seus adágios tridimensionais.
Na presente obra, intitulada Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim, Cerqueira se vale da tradição da fonte ornamental e de todo seu vocabulário de formas e possibilidades. Esse estranho híbrido de arquitetura, escultura e abastecimento de água, é utilizado por artistas desde o tempo dos sumérios, sem jamais perder sua atualidade e a possibilidade de agregar novos significados. Nas mãos de figuras tão dessemelhantes entre elas, e separadas por latitudes e cronologias as mais diversas, como Nicola Salvi, Gian Lorenzo Bernini, Niki de Saint Phalle, e I. M. Pei, esse suporte artístico, que nada mais é do que uma construção com uma ou mais bicas que jorram água sobre uma bacia, deu origem a obras das mais interessantes e potentes não só por suas realizações escultóricas, mas também pelo elo que conecta essas realizações à metáfora quase banal, e portanto inextinguível, da água potável e sua importância para a vida.
Referenciando claramente Cícero Dias e seu painel mais ambicioso Eu vi o mundo… Ele começava no Recife, Flavio Cerqueira nos coloca diante de uma figura, possível autorretrato subjetivo ou talvez um everyman com o qual todos podem se identificar, que rega a própria cabeça. Essa cabeça, centro da subjetividade e da autoimagem de todos nós, se apresenta aberta, com a tampa do crânio retirada pela imaginação do artista. Dentro da cavidade onde deveríamos encontrar um cérebro e seus nervos encontramos plantas regadas pela água que jorra sobre ela graças à ação dessa mesma figura. Regando a própria subjetividade, ela sustenta sobre si suas próprias folhas e, por consequência, de todos nós. O artista, aqui, interioriza a gênese de todo e qualquer Jardim do Éden, desse paraíso perdido por definição, não mais localizado, como no caso de Cícero Dias, em um ponto geográfico, mas agora dentro do sujeito que se rega a si mesmo, e reflete nossa própria consciência no espelho d’água que se encontra sob ele.
As esculturas de Cerqueira são o resultado de uma sensibilidade artística ao mesmo tempo marrenta e delicada, direta e interiorizada, bem-humorada e agridoce. Suas obras tingem-se, quase sempre, de um leve verniz de melancolia. Parece correto dizer que sua intenção é simplesmente apresentar um espelho ao mundo que começa dentro dele mesmo, reproduzindo-o tal qual, infiltrado, de forma franca e sincera, tomando dores e alegrias com o mesmo grau de desassombro e utilizando a arte e seus artifícios como observatório privilegiado para a destilação de suas experiências. Experiências essas que são o “ar comum que banha o globo”, e que nós, espectadores, somos convidados a partilhar e (por que não?) completar.
Giancarlo Hannud
I saw the world, and it begins within me
These are really the thoughts of all men in all ages and lands, they are not original with me;
If they are not yours as much as mine they are nothing, or next to nothing;
If they are not the riddle and the untying of the riddle they are nothing;
If they are not just as close as they are distant they are nothing;
This is the grass that grows wherever the land is and the water is;
This is the common air that bathes the globe.
Walt Whitman
Throughout his recent trajectory, Flavio Cerqueira has engaged himself with one of the oldest and most traditional of artistic techniques: bronze and lost wax. It is a method that has existed since the discovery of this metallic alloy sometime in the third millennium BC. The weight of a five-millennia tradition can be seen by young artists with a mixture of fear, unease and suspicion, or perhaps even contempt, for it is certain that to tread in the footsteps of Praxiteles, Donatello, Cellini and Rodin is not an easy task and that whoever does so does it at their own risk. Not so with Flavio Cerqueira, who battles with this technique and its expressive possibilities with remarkable candor and simplicity, patiently devoting himself to it with an outlook unhindered by the force of tradition. Thus, he inadvertently continues that same tradition, giving it new strength, without any trace of the archaic or nostalgic.
If at first Cerqueira’s interest resided in the moment that precedes a given action, he is now interested in registering action itself by including movement in his work. If before he recorded the prehistory of action, he now freezes it inserting time as a constituting element of his works, thus expanding the narrative and poetic possibilities of his three-dimensional epigrams.
In the present work, entitled I saw the world, and it begins within me, Cerqueira makes use of the tradition of the ornamental fountain and its vocabulary of shapes and possibilities. This strange hybrid of architecture, sculpture and water supply has been used by artists since the time of the Sumerians, without ever losing its relevance and the possibility of adding new meanings to it. In the hands of figures as diverse as Nicola Salvi, Gian Lorenzo Bernini, Niki de Saint Phalle, and IM Pei, and separated by the most diverse latitudes and chronologies, this artistic support, which is nothing more than a construction with one or more fountains spouting water over a bowl, has given birth to very interesting and powerful works not only for their sculptural achievements, but also for the link that connects these achievements to the almost banal metaphor, and thus unquenchable, of drinking water and its importance to life.
Clearly referencing Cicero Dias and his most ambitious panel I saw the world … It began in Recife, Flavio Cerqueira puts us here in front of a figure, possibly a subjective self-portrait or an Everyman with which everyone can identify, who waters his own head. This head, center of subjectivity and self-image of us all, appears open, with the skull cap removed by the artist’s imagination. Inside the cavity where we should find a brain and its nerves we see plants watered with the liquid that gushes on to it thanks to the action of the figure. Showering its own subjectivity, it sustains itself on its own leaves and therefore all of us. The artist here internalizes the genesis of any Garden of Eden, this paradise lost by definition, no longer localized, as in the case of Cicero Dias, in a geographical point, but now within the subject that is watering himself, and which reflects our own conscience in the mirror of water that is under it.
Cerqueira’s sculptures are the result of an artistic sensibility at once aggressive and delicate, direct and internalized, humorous and bittersweet. His works exist beneath a thin veil of melancholy. It seems fair to say that his intention is simply to present a mirror to the world that begins within himself, reproducing it as such, unfiltered, in an open and sincere manner, taking pains and joys with the same degree of honesty and using art and its devices as a privileged observatory for the distillation of his experiences. These experiences are the “common air that bathes the globe,” and that we, its spectators, are invited to share and (why not?) complete.
Giancarlo Hannud