ESCULTURA PROFANA

Ninguém mais esculpe como Michelangelo ou Bernini. Porque na mente de um escultor contemporâneo as figuras de Rodin se contorcem, as de Brancusi insistem na essência da forma, Picasso faz um touro com um selim de bicicleta e Henri Moore cerca o vazio com suavidade sinuosa. Assim, a escultura figurativa do jovem artista Flávio Cerqueira é feita em bronze mas pode ser lida como uma assemblage de referências da história da arte, que o artista reúne sem pudores, bem à maneira pós-moderna.

Pudor nenhum, que não se intimida ao fingir que é faiança aquilo que na verdade forjou em bronze e pintou de branco, numa pecaminosa mistura de Rodin com Jeff Koons. E segue nessa linha da tradução livre do passado para a contemporaneidade ao estudar o panejamento da calça jeans de suas figuras, ou ao calçar sapatinhos de salto alto na beata Ludovica de Bernini. Nossa época é dessacralizante.

No século 17, Bernini espalhou por igrejas italianas verdadeiras instalações que uniam escultura, iluminação e personagens em estados de êxtase religioso, como a famosa Santa Teresa, da Igreja de Santa Maria della Vittoria, ou a Beata Ludovica Albertoni, da Igreja San Francesco a Ripa, ambas em Roma. Nas duas esculturas o êxtase religioso é representado por expressões e gestos que remetem a um êxtase sexual. Flávio Cerqueira explicita em “Estado de Graça” esse conteúdo sexual que Bernini usou como camada subliminar em sua obra. A figura em bronze de Cerqueira é pequena, como uma boneca, e o metal é pintado de vermelho, acentuando o registro erótico da reinterpretação que faz do grande mestre italiano da escultura barroca.

As proporções perfeitas do Davi de Michelangelo ganham um contraponto com a obra de Cerqueira que trata da anatomia de um anão. Se, ao contrário de Davi, o anão de Cerqueira não remete à beleza clássica de um deus grego, ganha aqui ares de super-herói pop, com sua capa esvoaçante, sorriso artificial e indumentária irreverente.

Como uma criança que se espanta com o fato de as esculturas greco-romanas não terem braços, Flávio Cerqueira voltou de sua primeira viagem à Europa e fez seu João sem Braço em bronze, em 2008. Recentemente forjou um companheiro para esse João, um companheiro genérico, de rosto coberto, que pode ser qualquer um, como um rígido Kourus grego. Duas esculturas brancas tratam a questão do amor: “Ex-Corde” tem um rombo no peito e “Tudo entre nós” abraça o vazio. A aparência de porcelana parece homenagear o kitsch de Jeff Koons. Mas engana o olho pós-moderno: são bronzes, feitos com a tradicional técnica da cera perdida. Ainda há quem a utilize.

PROFANE SCULPTURE

Nobody sculpts like Michelangelo or Bernini nowadays. Because in the mind of a contemporary sculptor, Rodin’s figures are contorting, while those by Brancusi insist in the essence of forma, Picasso builds a bull out of a bicycle seat, and Henri Moore encircles emptiness with smooth sinuous curves. Thus, the figurative sculpture by young artist Flavio Cerqueira is made of bronze but can be read as an assemblage of art historical references, which the artist reunites without any modesty,very much in the post-modern manner.

No decency at all, and the artist does not blush when he pretends is porcelain that which he in fact molded in bronze and painted white in a sinful mixture of Rodin and Jeff Koons. And he follows in this line of  free translation of the past into the contemporary when he studies the drapery of blue jeans or confers high heels to Bernini’s Blessed Ludovica. Our age is blasphemous.

In the 17th Century Bernini spread throughout Italian churches his installations that united sculpture, lighting, and characters in religious trances, such as the famous Santa Teresa at the Church of Santa Maria della Vittoria, or Blessed Ludovica Albertoni at Church of San Francesco a Ripa, both in Rome. In both sculptures, religious ecstasy is represented by expressions and gestures that refer to sexual rapture. In “State of Bliss”, Flávio Cerqueira explicitly states the sexual content Bernini used as a hidden layer in his oeuvre. Cerqueira’s Ludovica is a small figure, reminiscent of a doll, and the metal is painted red, emphasizing the erotic atmosphere of his reinterpretation of the great Baroque Italian master.

The perfect proportions of Michelangelo’s David receive a counterpoint in Cerqueira’s piece that deals with the dwarf anatomy. Unlike David, Cerqueira’s dwarf does not refer to the classical beauty of a Greek god, but takes the appearance of a pop superhero, with his flying cape, artificial smile and irreverent costume.

Like a child astonished at the fact that Greek-Roman sculptures have no arms, Flávio Cerqueira came back from his first trip to Europe and produced his “John no Arms ” in bronze, in 2008. Recently he cast a pal for his Joe, “The Invisible,” a generic companion with his face covered who can be anyone, like a Greek Kourus. Two white sculptures deal with the subject of love: “Ex-Corde” has a hole in the chest, and “Everything Between Us” embraces the emptiness. The appearance of porcelain seems to be an homage to Jeff Koons. But it deceives the postmodern eye: they are bronzes, made with the traditional technique of lost wax. There are still those who use it.

 

Por Paula Braga