SERES EM INTERSECÇÃO
Dan Cameron
Nova York, dezembro de 2019
Embora a pressuposição de que todo artista produz autorretrato tenha se tornado lugar comum na história da arte, no caso de Flávio Cerqueira este tema reverbera em um registro em nada relacionado com narcisismo artístico, mas trata das atuais diferenças sociais e identitárias de classe e raça que ainda determinam quem tem livre arbítrio para se autodenominar artista e rotular sua produção como arte. Simplificando ao extremo, Cerqueira nasceu e foi criado na chamada classe trabalhadora brasileira e isto significa, basicamente, que cresceu sem internalizar qualquer expectativa de algum dia visitar um museu de arte e, muito menos, ter uma de suas obras em seu acervo permanente. Quando adolescente, ele finalmente se deu conta – ao assistir na TV um documentário sobre Vik Muniz – que existia um mercado no qual artistas produziam o que desejavam, para depois expor em galerias e vender a colecionadores. Foi uma verdadeira epifania. Mesmo assim, nos primeiros anos de sua carreira como artista independente Cerqueira ocultou das pessoas em seu círculo de amizades o fato relevante de estar produzindo arte em seu ateliê – embora trabalhasse no coração do mundo da arte paulistana.
Para alguém que durante anos hesitou em assumir sua posição de artista, talvez por receio de não corresponder às suas próprias expectativas (ou de terceiros), a busca pela própria essência na imagem do outro tornou-se para Cerqueira uma missão que remete diretamente à ideia central do que constitui nossa identidade pessoal no mundo. Se a recente expansão das variáveis linguísticas que usamos para nos identificar, com ênfase particular no modo como queremos ser tratados, pode ser seriamente considerada um marco num caminho que tomamos coletiva e voluntariamente, então o fato de nos vermos em outras pessoas é uma maneira de praticar empatia radical em resposta direta à instabilidade e confusão nas quais estamos continuamente envolvidos. Faz pouco tempo nos sentíamos vinculados a certas convenções sociais relacionadas com identidade, aparentemente tão inabaláveis que quase nunca foram submetidas a sérios questionamentos, mas que agora parecem narrativas superadas e prontas para serem deixadas de lado. Não seria justo também questionarmos por que a noção de individualidade é tão profundamente arraigada em nossos valores culturais compartilhados que efetivamente desvaloriza modos de troca e comunicação interpessoais que se estendem além das obrigações familiares ou profissionais? O estranho confuso no ônibus, a personalidade irritante na TV, o colega de trabalho entristecido, o vizinho atraente – ao sentirmos ímpetos de humanidade ou preocupação com seu bem-estar, estas conexões não significariam que vemos esses companheiros humanos como extensões de nós mesmos? O preço de não se identificar com o próximo parece levar exatamente àquelas formas de comportamento sociopata encenadas diariamente por líderes de alguns dos países mais poderosos do mundo.
Cerqueira se valeu pela primeira vez da estratégia do “Self como outro” no primeiro conjunto de obras que expôs publicamente: figuras masculinas de adolescentes (ou mais jovens) tentando se libertar de seus limites físicos imediatos. Sua primeira figura autônoma, João sem braço (2008), representa um jovem sem braços olhando placidamente para a frente, como se não tivesse conhecimento de suas limitações, enquanto Ex Corde (2010) traz um jovem com as mãos para trás, olhando pensativamente para baixo, alheio ao buraco do tamanho de um punho cerrado em seu peito onde seu coração deveria estar. Em alguns casos, as figuras de Cerqueira tentam desafiar a gravidade, como em Ninguém nunca esquece (2014), com um menino alarmado, pendurado num galho de árvore. Em Ao seu alcance (2012), um garoto está em pé num banco alto, esperando que os fogos de artifício em cada mão dispararem, enquanto em Passarinho (2013) outro garoto sobre um tronco de árvore posto em pé tenta alçar voo, embora suas ‘asas’ não passem de um apanhado frágil de galhos. Além das restrições físicas do corpo, outro limite persistente contra o qual as jovens figuras se defrontam é o da autoimagem: uma figura branca, fantasmagórica, se inclina para sua imagem espelhada, como se examinando um estranho (Antes que eu me esqueça, 2013). Outra figura branca mira a distância através de binóculos invisíveis (Horizonte infinito, 2013), enquanto a figura em bronze de Amnésia (2015), cuja pele irradia o calor do melado, simplesmente despeja tinta branca sobre a própria cabeça. O preço psicológico a ser pago por não ser branco em uma sociedade onde o racismo é real e raramente reconhecido se torna desconfortavelmente evidente nas ações que envolvem vergonha, confusão e o desejo do sujeito de ser alguém, exceto a pessoa que realmente é.
Em suas obras mais recentes, Cerqueira se empenhou em produzir imagens que celebram a autorrealização, como ele faz na contraparte de Amnésia, Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim (2015), em que um jovem com uma árvore viva plantada em sua cabeça está de pé em um espelho d’água raso, segurando com as mãos um regador do qual um fluxo constante de água jorra sobre seu semblante sorridente. Em duas obras de 2016, um adolescente acaba de grafitar cuidadosamente as palavras Sobre tudo, mas não sobre qualquer coisa em um muro, enquanto em O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, um garoto com tatuagens indígenas no rosto e no corpo espera com os braços retesados em arco enquanto cautelosamente devolve o olhar do observador, seu estilingue pendurado na cintura, um tanto ameaçador. Neste, e em outros trabalhos mais recentes, Cerqueira amplia seu escopo em termos de como o sujeito ostensivo pode ser simultaneamente ele mesmo, uma vez que nenhum destes dois últimos tem qualquer semelhança física com o artista. Em Tião (2017), vemos apenas a figura solitária que aguarda pacientemente a transfiguração do corpo, enquanto a árvore e as flechas (não as feridas) são deixadas à nossa imaginação. O rosto parcialmente encapuzado do mártir se volta beatificamente para cima, em direção ao céu, nada mostrando do sofrimento das inúmeras perfurações em seu corpo.
Gênero é a mais recente fronteira identitária que Cerqueira – pai de primeira viagem – começou a explorar. Ele retoma o espelho em A traição do olhar (2017), no qual, acreditando estar sozinho, um garoto usa dois limões sicilianos para imaginar como seria se tivesse seios de mulher. A intensidade de seu foco fala de uma narrativa que vai além da excitação sexual, levando a áreas de incerteza sobre se a identidade de gênero de uma pessoa corresponde à anatomia com que ela nasceu. Em 2018, como parte de sua participação em uma exposição organizada por este autor em Kansas City, Missouri, Cerqueira avançou um pouco mais na questão de gênero, apresentando como seu alter ego uma estudante universitária, baixa e esbelta, cujo andar decidido ao atravessar o campus não era afetado pelos quatorze livros didáticos que equilibrava na cabeça. O título da obra, Uma palavra que não seja esperar, serve para ilustrar o potencial ilimitado das convicções de uma pessoa trabalhadora e focada, bem como para remeter às atuais lutas do movimento por direitos civis, que sempre se defronta com admoestações, por parte de “pessoas bem-intencionadas”, para que sejam pacientes e esperem que as coisas melhorem por conta própria.
No contexto da convicção mais ampla de Cerqueira de que a arte começa com o subjetivo e o pessoal, mesmo que aspire ao mais alto ideal e ao universal, entender sua escolha de técnica expressiva é essencial para reconhecer totalmente o desenvolvimento de seu talento e visão técnica. Deixando de lado o fato que relativamente poucos artistas de sua geração fizeram o esforço necessário para dominar uma técnica tão trabalhosa e demorada, sua adoção do bronze fundido pode ser vista como reflexo de seu discernimento ao participar de uma esfera elevada da produção cultural que ultrapassa em muito as limitações que a sociedade normalmente impõe às pessoas de sua origem socioeconômica. Antes de tudo, o bronze é percebido como um veículo para a aspiração da arte à permanência no mundo e, como muitas obras de Cerqueira estão vindo à tona pela primeira vez, parece fundamental que a ocasião não seja deixada às vicissitudes do tempo. É fácil imaginar que, com o tempo, a capacidade extraordinária de Cerqueira de se reconhecer nas provações e tribulações de outros o levará naturalmente à representação de um corte transversal considerável de toda a raça humana.
INTERSECTING SELVES
Dan Cameron
New York, December 2019
While it’s become something of an art historical cliché to suggest that all artists make self-portraits, in the case of Flávio Cerqueira, the point reverberates on a level that isn’t about artistic narcissism, but addresses ongoing societal distinctions in class and racial identity that still define who has agency to refer to themselves as artists, and to label their production as fine art. To grossly over-simplify, Cerqueira was born and raised in what is typically referred to as Brazil’s working class, and what that means fundamentally is that he grew up having never internalized any expectation that an art museum was a place that he might someday aspire to enter, much less have his work become part of their permanent collection. When as a teenager it was finally made clear to him — while watching a TV documentary on Vik Muniz — that a marketplace existed wherein artists made things that they personally wanted to make, which they then showed at galleries and sold to collectors, it came as nothing less than a revelation. Even so, for the first few years of Cerqueira’s development as an independent artist, he concealed the pertinent fact that he was making art in his studio from those around him, even though his work was actually in the very heart of the São Paulo art world.
For someone who hesitated for years to claim the mantle of artist, perhaps out of fear that he might fall short of his own (or others’) expectations, the pursuit of one’s essence in the image of another became for Cerqueira a quest that speaks directly to the core notion of what constitutes our personal identity in the world. If the recent expansion of the linguistic variables that we use to identify ourselves, with a particular emphasis on how we wish to be addressed by others, might be seriously considered as a marker along a path on which we have embarked collectively and voluntarily, then seeing ourselves in others becomes a way of practicing radical empathy in direct response to the instability and confusion that continues to swirl around us. Not long ago we felt bound by certain social conventions regarding identity that seemed so unshakeable as to have almost never been subjected to serious interrogation, but now seem like outgrown husks ready to be cast aside. Isn’t it fair game to also ask ourselves why the notion of individuality is so firmly implanted as part of our shared cultural values as to effectively devalue modes of interpersonal exchange and communication that extend beyond familial or professional obligations? The confused stranger on the bus, the annoying TV personality, the sad co-worker, the attractive neighbor — once we feel some pangs of humanity or concern about their well-being, don’t these connections mean we are experiencing our fellow humans as extensions of ourselves? The costs of not identifying with others seem to lead to precisely those forms of sociopathic behavior that we see being enacted on a daily basis by those who lead some of the most powerful countries in the world.
Cerqueira’s first deployment of the self-as-other strategy came about in the first body of work to be shown publicly: single adolescent (or younger) male figures attempting to break free of their immediate physical confines. His earliest freestanding figure, John no arms (2008), portrays an armless youth gazing placidly forward, as if unaware of his limitations, while Ex Corde (2010) depicts a young man, his hands behind his back, gazing thoughtfully downward, oblivious to the fist-sized hole in his torso where his heart is supposed to reside. In some cases Cerqueira’s figures attempt to defy gravity itself, as in No one ever forgets (2014), with its frightened boy dangling precariously by his arms from a tree branch. With At your reach (2012), a separate boy stands on a tall stool, waiting for the firecrackers in each hand to go off, while still another boy, in Little Bird, 2013, attempts to take flight from an upended tree trunk, despite his ‘wings’ consisting only of a flimsy assortment of twigs. Aside from the physical constraints of the body, another persistent limit that the youthful figures push against is that of self-image: a ghostly figure leans into his mirror image as if peering at a stranger (Before I Forget Myself, 2013), another white figure gazes into the distance through invisible binoculars (Infinite Horizon, 2013), while the bronze figure in Amnésia (2015), whose skin radiates the warmth of dark honey, casually pours white paint over his head. The psychological toll enacted by being nonwhite in a society where racism is very real and too seldom acknowledged is made uncomfortably clear through actions that embody shame, confusion, and the subject’s desire to be someone other than the person one actually is.
In his more recent works, Cerqueira has become invested in conveying imagery that celebrates self-actualization, as he does in Amnésia’s counterpart, I Saw the World, and it Begins with Me (2015) wherein a youth with a live tree growing out of his head stands in a shallow reflecting pool, both hands clutching a watering can from below, from which a steady stream of water pours over his smiling countenance. In two works from 2016, a teenager has just finished studiously graffitiing the words About Everything, but Not About Anything onto a wall, whereas in The Glorious Return of One Who was Never Here, a boy with indigenous face and body tattoos waits with arms akimbo, warily returning our gaze while his slingshot dangles slightly menacingly from his waist. In this and other more recent works, Cerqueira is broadening his reach in terms of how the ostensible subject can simultaneously be him, since neither of these last two bear any physical resemblance at all. In Sebastian (2017), only the solitary figure patiently awaiting the body’s transfiguration can be seen, while the tree and arrows (not the wounds) have been left to our imagination. The martyr’s partly hooded face gazes beatifically upward toward heaven, showing none of the suffering from the numerous holes penetrating his body.
Gender is the most recent frontier of identity that Cerqueira, who has recently become a father, has begun to explore. He returns to the mirror in The betrayal of the gaze (2017), in which a boy who thinks he’s alone is using two Sicilian lemons to imagine what it would be like to have a woman’s breasts. The intensity of his focus speaks of a narrative extending beyond self-arousal, pushing into areas of uncertainty as to whether one’s gender identity conforms to the anatomy one was born with. In 2018, as part of his participation in an exhibition organized by the author in Kansas City, Missouri, Cerqueira pushed the gender line a step further, presenting as his alter ego a female college student, short and slender, whose decisive stride crossing the university campus is unimpeded by the fourteen textbooks expertly balanced on her head. The work’s title, Any word except wait, serves to illustrate the limitless potential in the convictions of a hardworking, focused individual, as well as to reference the ongoing struggles of the civil rights movement, which has invariably been met with admonitions from well-meaning bystanders to be patient and wait for things to improve on their own.
Within the context of Cerqueira’s broader conviction that art begins with the subjective and the personal even as it aspires toward the more idealistic and universal, understanding his choice of medium becomes key to fully appreciating the development of his technical facility and vision. Setting aside the reality that relatively few artists of his generation have made the necessary effort to master such an arduous and time-intensive medium, his adherence to cast bronze might be read as a reflection of Cerqueira’s abiding sense that he is participating in an elevated sphere of cultural production that far surpasses the limitations society typically places on individuals from his socioeconomic background. Before all else, bronze is perceived as a vehicle for art’s aspiration towards permanence in the world, and since many of Cerqueira’s subjects are effectively seeing the light of day for the first time, it seems critical that the occasion not be left to the vicissitudes of time. Over time, one could easily imagine that Cerqueira’s unique capacity to recognize himself in the trials and tribulations of those other than himself will lead him quite naturally to a depiction of a considerable cross-section of the entire human race.
Dan Cameron
New York, December 2019