Flávio Cerqueira e nossas memórias exiladas
Alecsandra Matias de Oliveira
Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele.
(Mário de Andrade, Macunaíma, 1928).
Macunaíma, criado em 1928, por Mário de Andrade, nasceu retinto, porém, pelas águas do rio tornou-se homem branco. Esse episódio inaugura as três raças (branca, negra e índia) no romance que tece as peripécias do “nosso herói sem nenhum caráter”. Num tempo e espaço mágicos, o autor fundante do modernismo, constrói uma narrativa que envolve mitos populares e cultura colonizada para desvelar a complexidade psicológica do “povo brasileiro”. Embebidos pelos ideais que buscam as raízes do Brasil e a homogeneidade nacional, por muito tempo, artistas e intelectuais fornecem os subsídios necessários para o exílio de memórias. Essas memórias “mal resolvidas reminiscências” que expõem a segregação de grande parcela da população (negros, índios, mulheres e LGBTs*) e, assim, elas são escondidas pelo mito de nossa democracia racial.
Os mais de 300 anos de escravidão (e, após 1888, de marginalização) nos dão o contexto atual: a permanência do privilégio do homem branco; o “misturar para embranquecer” e, ao mesmo tempo, o extermínio do sangue mestiço – evidente paradoxo e clara expressão do determinismo biológico que legitima a hierarquia das raças. Todos esses fatores são camuflados pela falsa meritocracia que impeliu (e ainda hoje impele) a juventude negra e mestiça à discriminação, sendo o sistema escolar um dos mecanismos mais potentes para essa exclusão. Mas, nessa “história do homem cordial”, sempre há os que denunciam e resistem.
Artistas visuais, como Flávio Cerqueira (São Paulo, 1983), escancaram séculos de memórias exiladas em seus trabalhos. Simbolicamente, nos trazem a tensão e o debate que alguns insistem em manter proscritos. E, por capricho da história da arte, Flávio usa, inspirado em Rodin, o bronze – material tão caro aos monumentos que rememoram os heróis. Adequado à tradição dos monumentos, o bronze liga-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é legado à memória coletiva). Para além dos nossos dias, o artista trabalha com um processo milenar (a fundição em bronze pelo processo de cera perdida) para dar forma aos seus personagens que, de certo modo, são anti-heróis.
Tião, 2017, realmente, é um anti-herói dignificado pelo bronze. Ele é insubmissão da arte contemporânea que utiliza a técnica tradicional para discutir os marginalizados. Citação, ironia e resistência no dia-a-dia marcam o fazer de Flávio Cerqueira. Nas suas esculturas, negros e mestiços protagonizam situações de introspecção e reflexão. Segundo a crítica de arte brasileira, eles representam novas versões para a história oficial do país.
Nesse sentido, Flávio joga com a força da tradição escultórica, através da técnica, do trabalho em atelier e da expressão figurativa, para miná-la de dentro para fora. O que faz sua arte tão contemporânea? Justamente, são o motivo (aqui já explicitado) e as pequenas subversões. E o que são as insubordinações? Vez ou outra, ele introduz objetos que rivalizam com o bronze, tais como, tinta eletrostática, espelhos, fiança, livros, escadas e troncos de árvores. Os títulos de seus trabalhos completam a reflexão sobre o motivo. Aqui tratemos de destacar algumas.
Em Foi assim que me ensinaram, 2011, o artista nos mostra a humilhação disfarçada de educação. De frente para o canto da sala, o dito “aluno indisciplinado” cumpre seu castigo sentado nos livros que deveriam ser sua redenção, mas são a base para o seu castigo. Em Eu te disse …, 2016, o corpo do menino foi sepultado pelos livros e pela quantidade de informações. Nas duas peças, o artista-contador de “causos” nos faz rememorar a opressão do sistema educacional brasileiro.
Em Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim, 2015, da cabeça do menino de bronze brotam plantas que se entrelaçam e se lançam ao espaço que envolve a obra. Essa peça reverencia a tela Eu vi o mundo … ele começava no Recife, 1928, do modernista Cícero Dias – obra que provocou grande escândalo por seus nus provocativos e por sua atmosfera onírica. À época, criação artística e sonhos são vistos como manifestações legítimas do inconsciente. A obra de Dias corresponde de modo imediato a essas expectativas. Mas, o mote do menino de bronze são seus sonhos e ideias que germinam e tomam de assalto o que está em volta.
Já Antes que eu me esqueça, 2013, a figura defronte ao espelho busca por sua imagem no reflexo; procura por uma identidade que a história sempre tentou dissipar – os traços identitários são memórias esmaecidas, mas não apaziguadas. Amnésia, 2015, nos faz lembrar o banho de Macunaíma, mas nela a tinta branca não é mágica e tão pouco suficiente para cobrir o menino – o embranquecimento social (a face pervertida da mestiçagem) surge aqui como memória sombria que paira entre nós.
Por fim, a poesis de Flávio Cerqueira nos remete às memórias que muitos preferem deixar adormecidas. Mas, são sentimentos que o artista vive (que nós vivemos e, por isso, a conexão). O artista não nos conta uma história com início, meio e fim porque nosso tempo e nossos sentimentos não são lineares. São memórias que vem e vão.
Cada uma de suas peças toca em ferimentos não fechados (mas, que insistem em ser ignorados). São esculturas que dizem tanto de nós e dos “outros” e, por essa razão, cada vez mais, têm acessado o devido reconhecimento de acervos, coleções e galerias nacionais e internacionais – isto porque tratam do humano em nós.
Flávio Cerqueira and Our Exiled Memories
When the hero emerged from his bath he was white, blond and blue-eyed; the water had washed away his blackness.
–Mário de Andrade, Macunaíma, 1928
Macunaíma, a character created by Mário de Andrade in his 1928 novel of the same name, was born with a black complexion, but the river water turned him into a white man. This episode gives rise to the three races (white, black and Indian) in the novel, which weaves the peripeteias of “our characterless hero.” In a magical time and space, the founding author of modernism constructs a narrative that involves popular myths and colonized culture to reveal the psychological complexity of the “Brazilian people.” Steeped in the ideals that seek for Brazil’s roots and for national homogeneity, for a long time artists and intellectuals have been furnishing the necessary elements for the exile of memories. These “unresolved reminiscences” expose the segregation of a large part of the population (black people, indigenous people, women and LGBTs*) and they are therefore concealed by the myth of our racial democracy.
The more than 300 years of slavery (and, after 1888, of marginalization) have determined the current context: the permanence of white privilege; the strategy of “mix to whiten” and, at the same time, the extermination of the racially mixed – an evident paradox and clear expression of the biological determinism that legitimizes the hierarchy of the races. All these factors are camouflaged by the false meritocracy that submitted (and yet today submits) the black and mestizo youth to discrimination, the school system being one of the most powerful mechanisms for this exclusion. But, in this “history of the cordial man,” there are always those who denounce and resist.
Visual artists, like Flávio Cerqueira (São Paulo, 1983), take the lid off from centuries of exiled memories in their works. Symbolically, they bring us the tension and debates that some insist on prohibiting. And, by a whim of the history of art, inspired by Rodin, Flávio uses bronze – the material par excellence of monuments that commemorate heroes. Well-suited to the tradition of monuments, bronze is linked to the power of the voluntary or involuntary perpetuation of historical societies (it is a legacy to the collective memory). Beyond our own days, the artist works with an age-old process (casting in bronze by the lost-wax process) to give form to his characters which, in a certain way, are antiheroes.
Indeed, Tião, 2017, is an antihero dignified by bronze. It is the nonsubmission of contemporary art, using a traditional technique to discuss the marginalized peoples. Citation, irony and day-to-day resistance are the staples of Flávio Cerqueira’s artistic practice. In his sculptures, black and mestizo people are the protagonists in situations of introspection and reflection. According to Brazilian art criticism, they represent new versions for the country’s official history.
In this sense, Flávio plays with the force of sculptural tradition, through technique, studio work and figurative expression, to undermine it from within. What makes his art so contemporary? Specifically, the force that drives it (as set forth above) and the small subversions. And what are the insubordinations? He sometimes introduces objects that rival with the bronze, such as electrostatic paint, mirrors, faience, books, ladders and tree trunks. The titles of his artworks complete the reflection on this driving force. Some of them are discussed below.
In Foi assim que me ensinaram [That’s How They Taught Me], 2011, the artist shows us the disguised humiliation of education. Facing into the corner of the room, the so-called “undisciplined student” is serving his punishment seated on books that should be his redemption, but which are the basis for his punishment. In Eu te disse … [I Told You…], 2016, the boy’s body is buried under books, by the quantity of information. In these two pieces, the artist-teller of “case-studies” makes us aware of the oppression of the Brazilian educational system.
In Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim [I Saw the World in It Begins Inside of Me], 2015, plants are growing from the bronze head of a boy, branching out into the space that surrounds the work. This piece is a nod to the canvas Eu vi o mundo … ele começava no Recife [I Saw the World… It Began in Recife], 1928, by modern artist Cícero Dias – a work that was considered scandalous due to its provocative nudes and dreamlike atmosphere. At that time, artistic creation and dreams were seen as legitimate manifestations of the unconscious. Dias’s work corresponds immediately to our expectations. But, the theme of the boy in bronze consists in his dreams and ideas that germinate and attack the surroundings.
For its part, Antes que eu me esqueça [Before I Forget Myself], 2013, consists of a figure in front of a mirror, searching for his image in the reflection; he is seeking for an identity that history has always tried to dissipate – the identitary features are memories that are faded but not erased. Amnésia [Amnesia], 2015, brings to mind Macunaíma’s bath, but in it the white paint is not magical nor enough to cover the boy – the social whitening (the perverted face of racial blending) arises here as a gloomy memory to hover among us.
Last but not least, Flávio Cerqueira’s poesis alludes to memories that many prefer to keep dormant. But, they are feelings that are part of the artist’s life (that are part of our lives and, therefore, a connection). The artist does not tell us a story with a beginning, middle and end because our time and our feelings are not linear. They are memories that come and go. Each of his pieces touches on unhealed wounds (but which insist on being ignored). They are sculptures that tell about us and about the “others” and, for this reason, they have become increasingly recognized by national and international collections and galleries – because they have to do with the human in us.