A escultura no flagrante da ação

Hélio Menezes

 

Na contramão da tradição da escultura figurativa em bronze, tão devotada a feitos heroicos, mitos clássicos ou grandes acontecimentos históricos, Flávio Cerqueira vem realizando trabalhos cheios de lirismo e leveza, de ironia por vezes, voltados a personagens corriqueiros, acontecimentos comuns. O bronze – um dos mais nobres e resistentes dos materiais, símbolo antigo de perenidade – é manejado pelo artista a partir da técnica clássica da cera perdida, dando vida a figuras humanas que encantam sobretudo pela simplicidade. A inserção de objetos não-escultóricos (espelho, livros, velas), tornados parte da escultura, é também rubrica de Cerqueira, junto aos títulos sugestivos, referenciados em ditos populares e versos coloquiais, que insinuam pistas de um roteiro, embora sem entregar o jogo.

 

Um garoto diante do espelho, portando camisa maior que seu número e que parece fazer as vezes de um vestido, segura dois limões sicilianos à altura do peito. Ele irá colocá-los por dentro da roupa, simulando seios imaginários? Vai jogá-los para cima, como um malabarista? Que mistérios atravessam seus olhos que, ao fitar a si mesmo, acabam por também se dirigirem a nós, que o flagramos em tal momento de intimidade, na iminência do ato? “A traição do olhar”, sensível escultura de Flávio Cerqueira, é boa pista de acesso para o entendimento do conjunto de obras reunidas nessa mostra individual do artista paulistano. Lá estão vários dos centros de interesse que têm orbitado seu processo criativo: a delicadeza do gesto; a solidão dos personagens; o registro de um instante fugaz, prestes a se desfazer; a predileção por situações cotidianas, quase banais.

 

São personagens que se seguram em galhos, como se intentassem voar (mas que podem cair logo mais); um sujeito soterrado pelo excesso de informação, vencido, quem sabe?, pelo peso da história – ou dela se erguendo, tão logo desperte; uma menina que, olhando firme em direção ao horizonte, carrega sobre a cabeça a decisão sobre o próprio destino, que sabe e faz a hora, sem esperar acontecer.

 

Como uma narrativa fragmentada, apenas sugerida, as situações em que os personagens se encontram convidam-nos a interagir com eles, como se fôssemos coautores de seus gestos, dividindo com o artista a criação de suas histórias: o que sucederá ao homem que carrega velas nas mãos, em momento de profunda introspecção, como num transe, quando abrir os olhos? Que dores e sentimentos de resiliência ecoam de sua posição de ofertório, subvertendo a tradição dos blackmoors?

 

As atitudes e poses dos personagens de Cerqueira parecem indiciar um momento congelado do ato, um gesto significativo da ação parado no tempo. Tal qual um contador de histórias, Cerqueira ativa em suas obras o tempo mítico da fábula, em que tudo é possível. Se nos encantamos por elas, é porque nos reconhecemos nelas, porque queremos dar-lhes vida, supondo a sucessão de acontecimentos que as levaram até ali, bem como os momentos que imediatamente lhe ocorrerão. Realizados como um “frame”, um recorte na diacronia, os trabalhos de Cerqueira parecem se inspirar na linguagem fotográfica, como quem tridimensionaliza “instantes decisivos” que contém, por força sugestiva, o enredo a ser contado. E dão corpo, assim, ao “instantâneo das coisas apanhadas em delito de paixão”, como uma vez a poetisa Natália Correia definiu o sentido mesmo de poeta.

 

 

Freeze-Frame Sculpture

By Hélio Menezes

 

Running against the grain of figurative sculpture in bronze, with its devotion to heroic feats, classical myths or great historical events, Flávio Cerqueira has been producing works full of lyricism and lightness, sometimes irony, focused on everyday characters and common events. Bronze – one of the noblest and most durable materials, an ancient symbol of perenniality – is worked with by the artist through the classical technique of lost wax, giving life to human figures that are charming mainly for their simplicity. The assertion of nonsculptural objects (mirrors, books, candles), which become part of the sculpture, is also one of Cerqueira’s hallmarks, together with suggestive titles, referencing popular sayings and colloquial lines, appearing like hints of the plotline, though without revealing the story.

 

A boy in front of a mirror, wearing an oversized shirt that sometimes looks like a dress, is holding two large lemons at breast height. Is he going to put them inside his clothes, faking imaginary breasts? Is he going to throw them into the air, like a juggler? What mysteries are shooting through those eyes which, even while looking at himself, are also looking at us, as we watch him at this intimate moment, at the threshold to his imminent action? A traição do olhar [The Betrayal of the Gaze], a sensitive sculpture by Flávio Cerqueira, is a good clue for gaining an understanding of the selection of artworks featured in this solo show by the São Paulo artist. The works include various hubs of interest that have recurred in his creative process: the delicateness of the gesture; the solitude of the characters; the register of a fleeting instant, ready to break apart; the predilection for everyday, nearly banal situations.

 

They are characters that hang onto branches, as though attempting to fly (but which can sooner fall); a subject buried by access of information, vanquished, perhaps, by the weight of history – or arising out of it, soon awakening; a girl who, looking steadily at the horizon, carries on her head the decision she has made about her destiny, who knows what she wants and will make it happen, proactively.

 

Like a fragmented and merely suggested narrative, the situations in which the characters are enmeshed beckon for our interaction, as though we were co-authors of their gestures, sharing in the artistic creation of their stories: what will happen to the man who is carrying candles in his hands, at a moment of profound introspection, like a trance, when he opens his eyes? What pains and feelings of resilience echo from his posture of offering, subverting the tradition of the blackamoors?

 

The attitude and poses of Cerqueira’s characters seem to indicate a frozen moment of the act, a significant gesture of the action frozen in time. Like a storyteller, Cerqueira activates in his works the mythical time of the fable, in which everything is possible. If we are enchanted by them, it is because we recognize ourselves in them, because we want to give life to them, supposing the succession of happenings that will take us to that place, as well as the moments that will immediately occur to him. Produced as a freeze-frame, a slice of diachrony, Cerqueira’s works seem to be inspired in the language of cinematography, like someone who tridimensionalizes “decisive instants” which contain, by their suggestive force, the screenplay to be told. And they thus embody the “snapshot of the things grasped in the delict of passion,” as the poetess Natália Correia once defined the meaning of poet.